(Uma notável crónica diária de David Remnick na New Yorker põe os pontos
nos i’s – na Casa Branca mora um racista que usa essa identificação como arma
política. Tenho dúvidas que a maioria
dos Democratas tenha compreendido que, para além do racismo visceral de Trump, ele
use esse estatuto como arma política.)
O estilo e o rigor de escrita de David Remnick não dão margem para dúbias
interpretações (link aqui). Ele fala claro, mas talvez isso não seja suficiente para que os
americanos vejam claro. Hoje parece ninguém ter dúvidas, com a exceção de um partido
Republicano em estado de negação, que Trump ergueu as posições racistas ao
poder. A pergunta inevitável é a de saber se, perante as sucessivas e despudoradas
posições públicas da mais pura e provocadora confrontação, estamos assistir a
uma espécie de suicídio político programado ou se, pelo contrário, é da mais rebuscada
arte política que estamos a falar.
Cada vez mais me inclino para a segunda hipótese. Trump é mestre na arte da
confrontação, esperando que dessa confrontação resulte energia e combustível
para alimentar a sua base de apoio, suscetível de a reforçar. Não esqueçamos o
facto de que Trump sabe que pode voltar a ser Presidente mesmo que derrotado em
termos de votos, tal como aconteceu na sua eleição. Os estados americanos que beneficiam
de uma sobre-representação parlamentar são essencialmente aqueles em que a sua
desbragada mensagem tem acolhimento.
Remnick lembra um outro importante facto. Trump não dispõe de uma carteira
de resultados em termos políticos que lhe permita grandes veleidades para se
vangloriar do que fez contra a corrente. A sua política de redução de impostos,
leia-se de impostos para os mais ricos, esfumou-se rapidamente em termos de
efeitos benéficos sobre o crescimento económico, aliás como a literatura económica
o antevê. A sua campanha do “Let’s Make America
Great Again” com o corolário da guerra comercial com tudo o que é mundo
civilizado e acordos de comércio nesse âmbito está a produzir efeitos de ricochete
nos americanos mais desfavorecidos, o que contradiz o racional desse slogan político.
A sua política de imigração tem sido obrigada a revelar-se no esplendor da sua
violência e desumanidade, um preço demasiado alto para justificar benefícios e
sem que em matéria de contenção haja resultados visíveis. Esta ausência de matéria
para mostrar serviço é uma boa justificação para a arte do confronto, provocando
personalidades políticas do campo democrata, trabalhando habilmente esse
confronto, nunca se assumindo como o racista que efetivamente é e esperando que
desse confronto resulte o engrossamento dos que são de facto racistas e se
sentem incomodados com a multiculturalidade que vai crescendo na sociedade americana.
Em linguagem de pura política de confrontação, o verdadeiro objetivo é provocar
que o adversário político morda o isco. Para além disso e ainda mais malévolo,
Trump espera que o eleitorado e as próprias estruturas do Partido Democrata se
dividam. Como já o desenvolvi neste blogue, o Partido Democrata atravessa hoje uma
profunda crise de identidade. Há os que continuam a pensar que Trump só pode
ser derrotado ao centro e os que, pelo contrário, entendem que tal como está a
sociedade americana é à esquerda que tal será possível. Joe Biden e em parte a “speaker”
do Congresso Nanci Pelosi representam a primeira tendência. Bernie Sanders e
Elizabeth Warren representam a segunda tendência. Ainda não entendi bem o posicionamento
face a estes referenciais da senadora pela Califórnia (Oakland) Kamala Harris,
que transporta consigo também uma imagem de forte personalidade.
Os últimos tempos têm demonstrado que a intuição de Trump é para ter em
conta e alguns desencontros entre Nanci Pelosi e algumas das congressistas democratas
que Trump provocou mostram que o Partido Democrata ainda não entendeu bem a técnica
da confrontação para a qual Trump o quer empurrar. Tudo parece residir na
interrogação de saber se a massa de apoiantes de Trump que não é racista e que
está mais perto dos velhos valores republicanos (existirão ainda?) irão ou não
permanecer em estado de negação. E temos aqui uma grande indeterminação dinâmica:
se parte do apoio anterior a Trump reconsiderasse então os Democratas mais
centristas beneficiariam; se isso não acontecer, então a esquerda democrata terá
mais chances. Pura indeterminação, agravada pelo facto do sistema eleitoral americano
poder repetir a façanha de colocar na Casa na Branca alguém derrotado por três
milhões de votos
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