(Há personalidades que nos tocam que, pela sua irrepetível
sensibilidade, inibem as nossas palavras para registar o seu desaparecimento. Senti
isso com a morte de João Gilberto, autor de um património musical que fica para
memória futura e para mostrar a sensibilidade de que os homens, alguns homens,
são capazes. As palavras de um escritor e
cronista que muito aprecio, António Muñoz Molina, resolvem-me essa inibição.)
A música de João Gilberto despertava-nos sempre para o irredutível alcance
da simplicidade, transformada em arte da sensibilidade. Nos últimos tempos da
sua vida, as questões de ausência, isolamento e de conflito com o mundo e a sua
família mais próxima sobrepuseram-se quilo que nos deveria guiar: louvar os
deuses para simplicidade e sensibilidade dos seus acordes.
Hesitei bastante estes dias em registar neste blogue a sua morte, já que me
faltava pena para estar à altura da personalidade.
No Babélia de ontem, lido hoje, pois os mistérios da distribuição só conseguem
colocar o El País em Braga e em Caminha no dia seguinte, vá lá saber-se por que
razão, a crónica Ida y Vuelta de António Muñoz Molina (link aqui) resolve-me o problema. É
uma crónica toda ela à altura da enorme sensibilidade de João Gilberto, que o
escritor espanhol considera o artista de aspeto “ de funcionário digno,
cumpridor e reservado”.
Limito-me, por isso, a citar o seu último parágrafo com a curiosidade de
Molina se referir a um artigo de Nuno Pacheco no Público do qual também gostei
bastante:
“No diário
Público de Lisboa, Nuno Pacheco escreve que João Gilberto encontrou ‘um caminho
do qual só ele sabia o segredo’. É um caminho interior que ele seguia como Lester
Young e Billie Holiday, à vista do público, na inevitável exposição dos
concertos. Mas, mesmo que
tocasse diante de milhares de pessoas, João Gilberto fazia-o como se estivesse
só, numa cadeira pequena e não muito cómoda, atento à sua própria voz e aos
sons da sua guitarra, como se continuasse fechado no quarto de banho da sua irmã,
como se tocasse e cantasse tão baixo para poder escutar-se a si próprio, não por
egolatria, mas apenas para controlar exatamente a pureza e a integridade da sua
arte. Por vontade pessoal, por convicção estética, um músico como João Gilberto
não eleva a voz para a impor aos outros nem sobe o volume para competir com o ruído
ambiental e com a surdez. O que tem para dizer tem de ser dito em voz baixa, cabendo-nos
a nós o máximo esforço para o alcançar. O esforço de cada um combina-se com o
de todos os demais para criar um grande silêncio propício, que converte em
espaço íntimo o sótão de um clube ou a concavidade imensa de um grande auditório.
A procura, o oferecimento de João Gilberto são como o do poeta ou o romancista
ao leitor: “A única coisa que te peço é toda a tua atenção”.
Talvez não lhe tenhamos o silêncio que a sensibilidade de João Gilberto
merecia. Daí o seu isolamento final.
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