(O artigo de 23 de maio de 2019 de Jan-Werner Müller na
London Review of Books, designado de ‘Populism
and the People”, confirma uma ideia sobre a qual vou amadurecendo cada vez
a minha convicção: o professor em Princeton na análise sociopolítica e Barry
Eichengreen na análise económica são os mais lúcidos intérpretes do populismo
de hoje. O que para mim é retribuidor
é o facto deste blogue os ter divulgado expressivamente.)
O artigo de Jan-Werner Müller (JWM) (link aqui) parte de uma boa questão: o que têm em
comum personalidades como Bolsonaro (Brasil), Erdogan (Turquia), Farage e os
hard Brexiters (Reino Unido), Kaczynski (Polónia), Modi (Índia), Netanhyahu
(Israel) e Trump (EUA)? Aparentemente, são mais as diferenças do que as
semelhanças, mas a verdade é que não hesitamos em atribuir-lhe um papel na arte
populista de conquistar eleitorado e governar.
Há razões identificáveis para que não seja fácil estabelecer traços comuns
na ascensão de personalidades tão controversas. O populismo baseia-se, entre
outras dimensões, numa visão nacionalista do mundo, particularmente no plano
económico, com matizes diferenciados de traços racistas e xenófobos, em parte
ditados pela rejeição sistemática do outro. Ora, estando nós perante economias
fortemente diversificadas entre si e, com exceção de Israel, com uma grande
dimensão, é natural que a arte populista de governação destas personalidades
assuma traços bastante diversos, determinados em grande medida pelas
características de cada economia. Aliás, com exceção de Trump e Modi, os
artistas do populismo jogam hoje com economias nacionais com resultados
macroeconómicos claramente desvalorizadores do “Our country will be Great again”. Basta pensar nas agruras por que
passa a economia turca para compreender essa dimensão.
JWM é particularmente clarividente quando invoca o pensamento de Tony Judt
para se focar nas dificuldades que muitos têm experimentado na compreensão do
populismo de hoje. Judt dizia que estávamos afundados numa contradição:
tornámo-nos muito competentes a compreender e explicar as lições da história,
mas somos muito maus a ensinar a história atual. Assim, passou-nos ao lado a
hipótese dos autoritarismos serem também capazes de aprender com o passado e
com os seus próprios erros. Ou seja, essa capacidade não está limitada às
democracias.
Segundo JWM, essa incapacidade analítica explica a falácia interpretativa
do populismo de hoje, representado por tão controversas personalidades, segundo
a qual estaríamos a reviver a emergência do fascismo. A mobilização de massas e
a militarização não estão a acontecer, mesmo tendo em conta o alarido que
provocou a militarização do 4 de junho nos EUA por parte de Trump, talvez mais
explicada pelo efeito de sedução da visita à Coreia do Norte. A fixação na
deriva fascista inibe a compreensão dos traços fundamentais do populismo de
hoje. Ela passa por limitar a designação de povo ao conjunto dos nossos apoiantes
e, mais importante ainda, estamos perante formas de utilização e apropriação do
Estado, ao mesmo tempo que se controlam os aparelhos que podem contrariar essa apropriação
– a imprensa e a justiça. A cleptocracia e o auto-enriquecimento declarado
completam o quadro, mas o que marca a combinação desses traços é o facto dos
populismos não necessitarem de formas de repressão violenta para exercer o
controlo sobre toda a sociedade. Mas a sua ação contra todas as formas de
sociedade civil organizada assume regra geral a acusação de que se trata de
organizações não identificadas com as pessoas reais e os seus problemas, entendidas
como veiculadoras de interesses externos ou representantes de inimigos do país,
caso da perseguição às organizações identificadas com o milionário Soros.
JWM traz para a análise o contributo do sociólogo húngaro Bálint Magyar que
utiliza a expressão de “estado mafioso” para caracterizar o modelo prosseguido
por Orbán, a partir do qual um conjunto limitado de famílias políticas tecem
uma rede de benefícios e proteções que alargam consideravelmente o seu poder. A
tese do “Estado mafioso” dificilmente poderá ser generalizada a todos os
populismos emergentes. Pode ser relevante para entender o caso húngaro, mas a
generalização é precipitada.
Invocar os ensinamentos da história é certamente algo de natural para quem
não duvida de que “a história interessa”. Mas JWM tem razão ao alertar para que
não só apenas as democracias têm essa capacidade de aprender com o passado. Os
autoritarismos também o podem fazer e estão a praticá-lo. Mas o fundamental é que
invocar os ensinamentos da história não nos deve conduzir a analogias fáceis e
preguiçosas. Tais analogias são o primeiro passo para não compreendermos o que
diferencia os populismos de hoje e como é que eles gerem a dominação da
sociedade sem enveredar por formas de repressão massiva. O alerta de JWM deve
ser recordado: “Enquanto os liberais e a esquerda se fixarem
na ideia de que a extrema-direita populista tem uma causa universal, permanecerão
fixados nos seus oponentes. Há mais a fazer do que se limitarem a ser “anti-populistas”:
devem começar a compreender que sentido dar à sua ação”.
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