quinta-feira, 25 de julho de 2019

CIDADANIA SELETIVA E REESCRITA DA HISTÓRIA

(Ilustração de João fazenda para a New Yorker)


(Tal como o sublinhei em post anterior, o populismo político com que a chamada democracia iliberal se alimenta assenta em estratégias próprias de cada das suas personalidades mais proeminentes, se bem que obedeça também a alguns traços comuns ainda carenciados de estudo mais profundo. Hoje, como achega a esse tema que continuará em aberto e sucessivamente enriquecido neste blogue, trago dois traços de peculiaridade dos figurões Trump e Orbán.)

O primeiro traço respeita a Trump e é registado pela implacável NEW YORKER através de um artigo de Jelani Cobb (link aqui). A despudorada tirada xenófoba de Trump relativamente às quatro congressistas americanas, que teve um largo eco na opinião pública americana e no Congresso, com sérios danos colaterais para os Democratas (diria que antecipados pelo próprio Trump), traduz segundo a revista nova-iorquina uma atitude de cidadania seletiva. Ou seja, numa reedição de outros momentos da história americana, a cidadania americana estaria reservada apenas a alguns. No caso das quatro congressistas não brancas o avanço para trás nas suas origens familiares permitiria concluir que as famílias das congressistas seriam facilmente identificadas como mais legitimamente americanas do que a própria família de Trump. O avanço das estratégias de cidadania seletiva constitui uma deriva perigosa sempre com basbaques e palermas a servir de coro, entoando atoardas como voltem para as vossas terras.

O segundo traço respeita a um outro figurão, Victor Orbán e atrever-me-ia a afirmar que ao pé de Orbán Trump é um aprendiz incipiente. A jornalista Valerie Hopkins, correspondente do Financial Times em Budapeste (link aqui), traz para a reflexão uma das vias mais insidiosas através das quais a maioria política de Orbán está a desconstruir a democracia a leste. Trata-se de uma intervenção da mais fina repressão, que poderíamos  designar de reescrita da história em proveito da figura do líder húngaro. O governo de Orbán tem seletivamente tomado o controlo de alguns institutos ligados à investigação histórica, restringindo progressivamente a sua independência e liberdade crítica. A crónica da jornalista do Financial Times refere especialmente a intervenção no chamado Instituto 1956 dedicado à investigação sobre a revolta de 1956 contra o domínio e influência da União Soviética. A intervenção teve por objetivo integrar o Instituto 1956 no Veritas Historical Research Institute and Archive dedicado, rezam os comentários mais críticos a reconstruir a imagem do Grande Líder Victor Orbán. Orbán sempre procurou capitalizar a sua proximidade face ao 1º ministro do tempo em que se deu o levantamento contra a União Soviética Imre Nagy. Segundo os comentários da jornalista do Financial Times estará em curso por parte de Orbán um processo de colocação em segundo da personalidade e história de Nagy em proveito da afirmação da sua própria liderança. Como seria de esperar, a integração do Instituto 1956 no outro instituto de investigação histórica foi apresentada com um simples ato administrativo, ditado por razões de uma mais eficiente organização da máquina do Estado.

Tal como o referia no referido post anterior, o populismo instalado dá mostras de um domínio supremo do controlo do Estado. No caso de Trump, é o uso seletivo dos mecanismos de atribuição da nacionalidade americana. No caso de Orbán, é a utilização da máquina do Estado e do seu controlo para criar condições de investigação para uma reescrita da história onde obviamente só haverá lugar para o Grande Líder.

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