quarta-feira, 4 de setembro de 2019

UM DESERTO DE IDEIAS E DE AÇÕES



(Os jornais de hoje veiculam para a opinião pública o recente relatório de auditoria do PANCD (Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação) (link aqui), que é bem crítico do estado da arte da sua concretização. Seria legítimo esperar coisa diferente?)

Comecemos por uma ressalva crítica. O Tribunal de Contas português bem poderia investir mais na sua capacitação para a avaliação de políticas públicas, tal como o fazem outros Tribunais de Contas europeus. Um Programa como o PANCD exigiria uma avaliação compreensiva dos seus resultados e não um mero exercício de auditoria. Isto não invalida, como é óbvio, a relevância do relatório agora tornado público. Mas como membro ativo da comunidade de práticas de avaliação de políticas, programas e projetos em Portugal gostaria que o Tribunal de Contas criasse no seu interior um centro de recursos de avaliação, pois não tenho dúvidas disso, reforçaria fortemente a sua ação de divulgação e pedagogia sobre o estado da arte dos compromissos que as políticas públicas assumem.

Depois, gostaria de reafirmar uma ideia já aqui introduzida. O PANCD faz parte de uma família numerosa de planos e programas que a moribunda orgânica de planeamento em Portugal tem vindo a gerar como uma espécie de fuga para a frente que oculta a sua fragilização, sobretudo à medida que os recursos e departamentos de planeamento dos diferentes Ministérios agonizam. Aparentemente, a orgânica de planeamento em Portugal é cumpridora e respira exercícios de planeamento. Na prática, o que assistimos é a fragmentação do planeamento em exercícios estéreis de compromissos que ora tocam de perto o “wishful thinking”, ora padecem de modelos de governação e de governança fiáveis e operativos que viabilizem a sua execução. Ao mesmo tempo que a fragmentação avança, multiplicando planos e programas, e nem a subtil passagem de plano a programa representa algo de auspicioso, desvalorizam-se os processos globais e vinculativos de planeamento que poderiam assegurar alguma ordem e estratégia. O melhor exemplo dessa desvalorização foi a elaboração do PNPOT (Plano Nacional de Ordenamento do Território) e as sucessivas indefinições, atrasos e desvalorizações que Planos Regionais de Ordenamento do Território de regiões relevantes como o Norte e o Centro têm sido votados.

A setorialização de intervenções como a que deveria estar subjacente ao combate contra a desertificação do solo constitui o caminho certo para a inépcia da sua implementação. A administração pública portuguesa despreza a cooperação de recursos entre serviços, departamentos e ministérios. O combate à desertificação e a batalha da revitalização do interior pertencem a essa categoria. A multiplicação de planos e programas alivia a consciência de deputados e membros do governo mas a vontade política para mover esse tipo de montanhas é pura ficção.

Um exemplo do qual tenho recentemente e em termos profissionais estado próximo ilustra o que tenho vindo a argumentar. Ninguém questiona que o Alentejo, particularmente o Baixo Alentejo, mas também partes do Norte Alentejano e do Alentejo Central estão sob a ação erosiva dos fatores de desertificação do solo. Entretanto, o Ministério da Agricultura continua, ufano das suas competências, a apoiar os esforços de sistemas agrícolas intensivos que a prazo irão acrescentar ao solo já desertificado outros terrenos exaustos pela utilização intensiva.

Finalmente, combate à desertificação e revitalização do interior são peças indissociáveis de uma visão mais coesa do território continental, à luz do que sabemos hoje de alterações climáticas e impacto das mesmas no país. Ambos os combates são o oposto da atomização que campeia por esses territórios. Atomização indireta e talvez inconscientemente determinada pelo voluntarismo municipal, mas que o investimento público (que se veja) não tem contrariado, antes potenciado. O milagre de multiplicação de planos e programas sem investimento público que contrarie essa atomização e desvalorizando os processos de planeamento integradores do território está condenado a suscitar relatórios como o do Tribunal de Contas. Se este relatório tivesse sido conduzido não numa lógica de simples auditoria mas antes numa perspetiva mais abrangente de avaliação a compreensão da inevitabilidade da falta de resultados seria bem mais clara.

Sem comentários:

Enviar um comentário