domingo, 8 de setembro de 2019

POR TERRAS DE LIGARES E VALFLOR

(Ligares)
(Albufeira da Barragem de Vilar)


POR TERRAS DE LIGARES E VALFLOR

(Manifestações do ritual dos inícios de setembro com o reencontro de amigos no contexto de um interior bem mais multifacetado do que as nossas abstrações mais ou menos conceptuais o sugerem. A profundidade das noites e a leveza das manhãs para tonificar o espírito e revitalizar o corpo.)

Este ritual dos inícios de setembro faz parte do adeus ao verão cada vez mais errático e de preparação para o triste outono.

O reencontro faz-se com duas aldeias distantes uma da outra cerca de 60 quilómetros, o que é isso para territórios em que o conceito de distância não de facto o mesmo significado do apertado minifúndio. Ligares é uma aldeia de Freixo de Espada à Cinta mas paredes meias com Torre de Moncorvo e a escassos quilómetros do Douro (Pocinho e aquela impressionante exposição do Vale Meão). Valflor, por sua vez, é uma aldeia do concelho da Mêda, já bastante próxima de Trancoso. À primeira vista, ambas atravessam o ciclo do declínio demográfico, talvez irreversível, e com isso o progressivo desaparecimento da atividade de ocupação do campo. Mas as dimensões não são similares, Ligares tem ainda mais população. Em ambas é visível, porém, a coexistência de capital habitacional relativamente renovado e em abandono profundo, com o primeiro regra geral já fechado após a partida da emigração.

Mas há um traço de Ligares que sempre me espanta. É o espantoso grau de ocupação daquele solo, com a combinação virtuosa do olival, das amendoeiras e a pujança da vinha e nos interstícios o multi-aproveitamento de tudo quanto é legume para autossubsistência e que inimitável é aquele sabor. Este grau de ocupação do solo em Ligares está profundamente no oposto do nosso discurso quanto a este tipo de territórios, eu chamar-lhe-ia o milagre da ocupação e é um regalo para vista do visitante acidental assente como é óbvio na penosidade dos que conseguem aquela proeza. É também um caso de eficaz e pleno aproveitamento de fundos agrícolas e das iniciativas da Junta de Freguesia local, o primeiro caso resultante da argúcia dos produtores existentes e o segundo assegurando uma retaguarda social juntamente com a ação da Câmara Municipal. Conheço de perto uma das famílias alargadas que vai conseguindo o milagre da ocupação, quase todos eles já em situação de reforma dos empregos locais que mantiveram ao longo da vida ativa e em todos eles se verifica a existência do chamado elevador social. A complementaridade entre as reformas e a dura ocupação na atividade agrícola é a raiz do milagre, combinado com cálculo económico racional. A lenha já se compra em Espanha, o gás e o porco também, tudo assim porque as contas foram feitas e os resultados demoveram toda a inércia e afetividade possíveis.

Interrogo-os sobre a sustentabilidade daquele espantoso grau de ocupação da terra. Praticamente todos me dizem que o tal elevador social ditará muito provavelmente que esta seja a última geração capaz de assegurar a dinâmica que sempre me espanta porque contraditória com o nosso discurso abstrato sobre o interior. Imagino que com alguma dificuldade mais uma década será possível, já que apesar de algumas maleitas, esta geração na ordem dos 70 terá ainda energia para mais uns anos de ocupação plena. Depois será difícil esperar que outro milagre se repita. Entretanto, a CM de Freixo assegura transporte gratuito da aldeia ao centro de saúde em Freixo, depois de uma experiência gorada de presença de dois médicos na Junta de Freguesia em alguns dias da semana. Quem pode dizer que se trata de uma má medida?

Quanto a Valflor, o grau de ocupação do solo é bem menos impressionante e só a vinha parece assegurar algum tempo de animação. Os meus amigos vão assegurando com sucessivas vindas do Porto ao local alguma resiliência, talvez uma segunda geração possa manter imperfeitamente essa função de supervisão de alguma mão-de-obra local, escassíssima, mas por aqui os tempos de resiliência estão mais próximos do nosso discurso mais sombrio.

Pouco mais de 50 quilómetros de distância e uma infinidade de matizes sobre o interior emerge com clareza, aconselhando cautela e mais conhecimento sobre qualquer discurso não piedoso sobre a baixa densidade.

Desta vez deu para conhecer alguns pontos de referência em torno de Valflor. A albufeira da barragem de Vilar no Távora, mais propriamente no Freixinho em Sernancelhe, o vale do Varosa com S. João de Tarouca (igreja e ruínas do convento de Cister), a praia fluvial de Tarouca. Mas não são estes pontos de referência, por mais sugestivos que o sejam para o visitante acidental, que operam o milagre da ocupação da terra.
 


.

Sem comentários:

Enviar um comentário