(No fim de semana mais prolongado do que o habitual em
Lisboa, oportunidade para rever a obra de Sarah Afonso e reencontrar a sensibilidade
desbordante de Maria João Pires, acompanhada da soprano arménia Talar Dekrmanjian.
Há que usufruir de algum
centralismo cultural)
Tenho para mim que os portugueses em geral não
têm uma visão acabada, que lhes poderia massajar o ego, da dinâmica e vitalidade
artísticas que brotaram do período em que pintores como Amadeu Sousa Cardoso,
Eduardo Viana, Mário Eloy, Domingos Alvarez, Almada Negreiros e Sarah Afonso, esta
última talvez a mais esquecida, irradiaram génio e criatividade. Creio que
todos eles partilharam a característica de terem quebrado amarras e passarem
por Paris para interagir com as influências de um tempo espantoso em termos de
criatividade. No caso de Sarah Afonso essa quebra de amarras ainda é mais
espantosa pois foi o seu próprio que se empenhou em arranjar as condições financeiras
para que Sarah pudesse usufruir dessa experiência.
As exposições da Gulbenkian e do Museu
Nacional de Arte Contemporânea são complementares e tiveram para mim o efeito
crucial de conhecer melhor uma obra intensa, profundamente variada, muita dela (caso
dos anéis e botões em cerâmica) fruto da necessidade de encontrar subsistência para
a família, particularmente em períodos em que as encomendas públicas para Almada Negreiros
escasseavam. O período em que Sarah Afonso interagiu mais de perto com a iconografia
minhota, particularmente de Viana do Castelo é surpreendente de vivacidade e capacidade
interpretativa do imaginário regional. Mais completa em termos de obra a exposição
do MNAC, mas mais expressiva do ponto de vista interpretativo a da Gulbenkian,
acho que finalmente se fez justiça a uma artista portuguesa de mão cheia.
Mas o motivo central da ida a Lisboa era o
reencontro com a sensibilidade virtuosa de Maria João Pires, com a
particularidade de ela tocar em duas partes os quatro andamentos do Impromptus D
935 de Schubert. Se alguma vez alguém maléfico me obrigasse a reter no meu
universo musical apenas uma peça essa seria seguramente o Impromptus D 935,
particularmente o segundo e o quarto andamento. Nomeadamente o segundo poderia
estar uma noite inteira a trautear a sua harmonia melódica.
A residência de Maria João Pires tem
previstos três espetáculos (já cá cantam os ditos para novembro e março), e o
primeiro, para além da maravilha de Schubert a solo, tocada em duas partes, integrava-se
no ciclo oriente-ocidente, na qual a pianista portuguesa acompanhou com mestria
a soprano arménia Talar Dekrmanjian. O reportório das duas partes respeitava a
canções populares arménias de um compositor arménio Komitas que viveu ainda em tempos
do próprio Calouste Gulbenkian. Um prodígio de sensibilidade, ainda que a língua
arménia não seja propriamente acessível. Mas o encore com a Avé Maria de Gounod
valeu toda uma parceria, de arrepiar o menos sensível.
A sala da Gulbenkian estava ao rubro e as personalidades
de peso davam ao sarau uma ambiência especial, entre outros, a ministra da
Justiça Francisca Van Dunen e Eduardo Paz Ferreira, o Ministro da Ciência
Manuel Heitor, Isabel Alçada e Rui Vilar, Isabel Mota, José Fernandes Fafe,
Pires de Lima. Mas a sensibilidade de Maria João Pires ao serviço do Impromptus
D 935 de Schubert e a elegância da sonoridade de Talar Dekrmajian apagaram toda
essa pompa, aliás convém num auditório cada vez mais envelhecido.
É tempo de regressar à realidade do burgo.
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