terça-feira, 24 de setembro de 2019

DUAS, TRÊS MULHERES



(No fim de semana mais prolongado do que o habitual em Lisboa, oportunidade para rever a obra de Sarah Afonso e reencontrar a sensibilidade desbordante de Maria João Pires, acompanhada da soprano arménia Talar Dekrmanjian. Há que usufruir de algum centralismo cultural)

Tenho para mim que os portugueses em geral não têm uma visão acabada, que lhes poderia massajar o ego, da dinâmica e vitalidade artísticas que brotaram do período em que pintores como Amadeu Sousa Cardoso, Eduardo Viana, Mário Eloy, Domingos Alvarez, Almada Negreiros e Sarah Afonso, esta última talvez a mais esquecida, irradiaram génio e criatividade. Creio que todos eles partilharam a característica de terem quebrado amarras e passarem por Paris para interagir com as influências de um tempo espantoso em termos de criatividade. No caso de Sarah Afonso essa quebra de amarras ainda é mais espantosa pois foi o seu próprio que se empenhou em arranjar as condições financeiras para que Sarah pudesse usufruir dessa experiência.

As exposições da Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte Contemporânea são complementares e tiveram para mim o efeito crucial de conhecer melhor uma obra intensa, profundamente variada, muita dela (caso dos anéis e botões em cerâmica) fruto da necessidade de encontrar subsistência para a família, particularmente em períodos em que as encomendas públicas para Almada Negreiros escasseavam. O período em que Sarah Afonso interagiu mais de perto com a iconografia minhota, particularmente de Viana do Castelo é surpreendente de vivacidade e capacidade interpretativa do imaginário regional. Mais completa em termos de obra a exposição do MNAC, mas mais expressiva do ponto de vista interpretativo a da Gulbenkian, acho que finalmente se fez justiça a uma artista portuguesa de mão cheia.

Mas o motivo central da ida a Lisboa era o reencontro com a sensibilidade virtuosa de Maria João Pires, com a particularidade de ela tocar em duas partes os quatro andamentos do Impromptus D 935 de Schubert. Se alguma vez alguém maléfico me obrigasse a reter no meu universo musical apenas uma peça essa seria seguramente o Impromptus D 935, particularmente o segundo e o quarto andamento. Nomeadamente o segundo poderia estar uma noite inteira a trautear a sua harmonia melódica.

A residência de Maria João Pires tem previstos três espetáculos (já cá cantam os ditos para novembro e março), e o primeiro, para além da maravilha de Schubert a solo, tocada em duas partes, integrava-se no ciclo oriente-ocidente, na qual a pianista portuguesa acompanhou com mestria a soprano arménia Talar Dekrmanjian. O reportório das duas partes respeitava a canções populares arménias de um compositor arménio Komitas que viveu ainda em tempos do próprio Calouste Gulbenkian. Um prodígio de sensibilidade, ainda que a língua arménia não seja propriamente acessível. Mas o encore com a Avé Maria de Gounod valeu toda uma parceria, de arrepiar o menos sensível.

A sala da Gulbenkian estava ao rubro e as personalidades de peso davam ao sarau uma ambiência especial, entre outros, a ministra da Justiça Francisca Van Dunen e Eduardo Paz Ferreira, o Ministro da Ciência Manuel Heitor, Isabel Alçada e Rui Vilar, Isabel Mota, José Fernandes Fafe, Pires de Lima. Mas a sensibilidade de Maria João Pires ao serviço do Impromptus D 935 de Schubert e a elegância da sonoridade de Talar Dekrmajian apagaram toda essa pompa, aliás convém num auditório cada vez mais envelhecido.

É tempo de regressar à realidade do burgo.

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