domingo, 15 de setembro de 2019

O CULPADO ESTÁ ARREPENDIDO


Antes assim do que de outra maneira. David Cameron (DC), após longo silêncio, veio a terreiro com excertos de umas “Memórias” em vias de publicação e que tudo indica deixarem for the record algum sinal de arrependimento. O editorial do “The Guardian” de hoje diz quase tudo em título: “When great power comes with great irresponsibility” – o texto é devastador e termina assim: “Toda a sua vida foi passada entre pessoas para quem, em última instância, os erros não importariam. Embora a paixão política seja mais forte em pessoas que sabem que não se podem dar ao luxo de errar e que dificilmente se podem dar ao luxo de ter azar. Há algo de muito inconsistente num sistema que permitiu que ele subisse ao topo sem nunca entender a razão pela qual a maioria dos outros jogadores estava em jogo. Até ao final da carreira, o seu encanto nunca lhe custou nada, mas a sua incapacidade para ver que outros – especialmente aqueles que ele conhecia bem – não pensavam ou agiam como ele custaram muito caro ao seu país.”

Dois aspetos parecem especialmente de assinalar no escrito de DC: (i) ele lamenta o referendo europeu de 2016 (parcialmente, na medida em que algo contraditoriamente considera “necessária e inevitável” a sua convocação), chegando mesmo perto de emitir um pedido de desculpas (“Lamento profundamente o resultado e aceito que a minha abordagem falhou. As decisões que tomei contribuíram para esse fracasso. Eu fracassei.”), num quadro em que pateticamente escreve que pensa diariamente nas suas consequências divisionistas e que se preocupa “desesperadamente” com o que irá acontecer; (ii) ele critica asperamente Boris Johnson, quer quando se voltou contra o seu próprio governo na campanha pelo Remain, contribuindo significativamente para uma desfavorável “guerra assimétrica”, quer no julgamento de coerência e caráter que dedica ao primeiro-ministro (por um lado, porque ele “não acreditava” no Brexit e apenas arriscou apoiar o Leave por carreirismo político e temor do peso que Michael Gove poderia ganhar e, por outro lado, porque ele afirmava em privado que era favorável a um segundo referendo para confirmar os termos do Brexit, convencido como estava de que ou o Leave perderia ou, se vencesse, seria seguido por uma nova negociação seguida do tal segundo referendo – depois, na realidade, tudo caiu às mãos de conveniências sucessivas).

Um documento histórico, sem dúvida, ainda que um documento que nada vem adiantar ou atrasar face ao que de essencial se vai conhecendo e/ou desenrolando. Acresce que o inferno está cheio de gente desta que primeiro trata ligeiramente do ego e só depois percebe os interesses que lhe caberia ter defendido...

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