quinta-feira, 19 de setembro de 2019

DOS ARQUIVOS



(Não sou muito achacado ou obcecado por pesquisar nos arquivos pessoais escritos antigos que possam revelar contradições de pensamento que, mais do que a sua evolução natural, revelem instabilidades típicas do catavento. Mas, por vezes, há surpresas agradáveis.)

Há quem viva obcecado pelas partidas do passado em termos de possíveis contradições com o que se vai exprimindo de simples opinião ou de pensamento mais elaborado. Essa deriva é mais frequente em políticos que sofrem frequentemente a pressão impiedosa do escrutínio do que se disse ou escreveu no passado, exercícios muitas vezes descontextualizados e que visam apenas ferir ou abanar as personagens em questão. Não falo desse tipo de pressão do escrutínio passado. Essa aplica-se a gente com mais notoriedade pública do que este vosso amigo, mais próximo do que costumo designar, em momentos de maior azedume, de invisível institucional. Falo antes de um outro tipo de pressão, do foro mais pessoal, de gente preocupada com a coerência do seu pensamento e que busca incessantemente evidência se o tempo o atraiçoou. Felizmente não é coisa que me apoquente, sempre mais interessado no usufruir do momento em que se escreve, mais do que na revisão algo narcísica do que se conseguiu formalizar num dado contexto.

Mas há, por vezes, surpresas agradáveis, descobertas de coisas que se tinham perdido na espuma acidentada dos dias de trabalho e que, milagre dos milagres, conservam a intensidade do tiro. Há dias, pelo simples facto de arrumações acidentais de estante, apareceu em cima da minha secretária caseira uma colectânea de artigos publicada pela Afrontamento, coordenada por Luís Delfim Santos e de Daniel Bessa (que estranha parceria à luz do contexto de hoje!) designada de REGIÃO NORTE DE PORTUGAL – Actualizar e aprofundar o conhecimento, datado de setembro de 1999, ou seja com 20 anos de vida. Confesso que já se me tinha varrido da memória a participação nessa obra coletiva. Isso justifica a curiosidade de recordar o que tinha então elaborado como contributo. O artigo chamava-se Espessura Institucional e Modelo de Governação e não resisti a medir a usura do tempo sobre o que lá transmiti. E o melhor é citar os dois primeiros parágrafos, ou seja a abertura de algo que intitulei “Uma consciência regional tardia e fragmentada”. Aqui vai:

“O jogo democrático é e será sempre clarificador. Já o sabíamos desde o início da nossa aprendizagem democrática colectiva, mas vale sempre a pena reencontrar essa evidência. Assim aconteceu com os resultados do referendo do dia 8 de novembro de 1988. Tal como pugilista perseverante que golpeia sem cessar o seu alvo de treino e, à mínima distração, se vê confrontado com um golpe de retorno, que o atinge em cheio, também o referendo nos agitou, reiterando a necessidade de pensamento estratégico permanente, buscando a todo o momento oportunidades e margens de transformação possível de situações-problema que aguardam soluções.
No entanto, é no coração metropolitano da região-plano Norte que as repercussões do não à regionalização são mais fortes. Afinal, o que nos parecia uma evidência de necessidade, só nesse coração metropolitano correspondia, de facto, a uma opção clara dos cidadãos, mesmo em concelhos partidariamente não identificados com a maioria governante. Por um lado, fomos confrontados com a evidência de que as nossas convicções não são substancialmente mais fortes o que as observadas em muitos concelhos da Área Metropolitana de Lisboa. Por outro, fomos golpeados com a evidência de que a consciência regional a Norte é praticamente inexistente, do interior mais profundo e esvaziado à densidade do difuso e do urbanamente dinâmico. O que pensámos ser uma consciência regional desperta para os desafios do futuro, não é senão a expressão de localismos fechados, frequentemente serôdios, com expressão política mas não em termos de cidadania e aos quais não soubemos configurar um sentido de pertença regional, uma identidade na acção e uma coerência de representações.”

Retirando a alusão ao golpe do referendo, parece que o tempo não passou sobre estas palavras e foram 20 anos.

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