terça-feira, 10 de setembro de 2019

DESCIDAS DE IMPOSTOS



(Fatal como o destino, o tema haveria que pairar inevitavelmente sobre o período eleitoral português, se não fora por outro motivo pela simples réplica do que alguns governos mais liberais ou mais populistas têm vindo a acenar como meio de atração de eleitorado. O que constitui uma oportunidade para relembrar algumas ideias que tendem a não passar pela campanha eleitoral e pelo debate que o 6 de outubro irá gerar.)

Em primeiro lugar, há que distinguir as bandeiras políticas da descida de impostos quando agitadas em economias mais avançadas como meio de dinamização da atividade económica e pretensa animação do investimento em confronto por exemplo com situações estruturais de países com tradição de tributação baixa ou amena. No plano mais recente, a economia americana de Trump e os conservadores no Reino Unido têm-se distinguido nessa febre doentia de descida de impostos, o que não tem nada que ver com situações de países como por exemplo a Irlanda e os Países Baixos que partilham uma cultura de baixos impostos sobre o capital e lucros obtidos pelos diferentes negócios e investimentos.

O que sabemos de evidências nos Estados Unidos e também no Reino Unido é que a descida de impostos significa normalmente aliviamento de carga sobre os mais ricos, esperando com essa perspetiva magnânima relativamente ao capital e os rendimentos mais elevados se traduza em dinamização do investimento. Na prática, o que as evidências nos dizem é que a descida de impostos tende a gerar um efeito positivo sobre a economia muito a curto prazo, com resultados muito limitados no tempo. Os efeitos estruturais sobre os ritmos de crescimento económico a longo prazo são anémicos senão inexistentes. O que significa que a descida de impostos tende a afirmar-se como um veículo poderoso de transferência de rendimento sem que essa transferência se transforme em motor de crescimento, dando apenas para animar a conjuntura económica, numa espécie de efeito “one shot”.

A questão da descida de impostos volta a animar o debate económico no Reino Unido, pois o desesperado Johnson anunciou para amenizar o ambiente de pura efervescência um estímulo fiscal com essa matriz. Mas o que uma peça recente de Simon Wren-Lewis publicada no Guardian nos transmite é que o tresloucado primeiro-Ministro britânico oculta deliberadamente que o pós Brexit, qualquer que seja o caminho, irá gerar um forte aumento de despesa pública. Com descida de impostos e pressão sobre a despesa pública imposta pelos acontecimentos segue-se uma crónica anunciada de descontrolo orçamental e um cada vez mais que provável ajustamento com tons de austeridade que, como sabemos, se repercute geralmente em prejuízo dos mais pobres e dos mais desfavorecidos.

Em síntese, se quisermos extrapolar a partir de economias mais avançadas, as tão populares e reclamadas descidas de impostos não trazem como evidência associada qualquer efeito estrutural e duradouro sobre o crescimento económico via procura. E, regra geral, para além de comprimirem as margens de manobra da despesa pública, projetam-se sempre em posteriores ajustamentos orçamentais que penalizam não os que foram beneficiados pela baixa de impostos mas os grupos sociais mais desfavorecidos por via da austeridade.

A transposição deste debate para Portugal exige muitas cautelas. Primeiro, porque é irrecusável a existência de uma fadiga fiscal em Portugal, penalizando mais os titulares de rendimentos do trabalho do que do capital. Segundo, porque há um peso excessivo da tributação indireta, socialmente injusta, e grande responsável pelo continuado debate sobre a carga fiscal em Portugal. Terceiro, e no meu modesto entender o mais importante, a base fiscal para a tributação em Portugal é bastante estreita, já que uma grande percentagem de famílias não paga impostos diretos por não atingir os limiares mínimos a partir dos quais a punção fiscal é exercida. Por isso, tendo a pensar que mais do que uma exigência de descida de impostos, o problema da economia portuguesa é a exiguidade do grupo dos que pagam impostos e não estou a considerar na equação a questão da evasão fiscal ou da fuga de rendimentos para o exterior não tributada. Mas o que me parece crucial e tem andado arredado do debate político é a relação política que tem de ser estabelecida entre fadiga e carga fiscal e qualidade da despesa pública e dos seus efeitos em termos de resultados de qualidade de serviços públicos.

Por outras palavras, à resposta mais ou menos provocadora do cartaz eleitoral da Iniciativa Liberal a minha resposta é que sim estou disposto a admitir uma carga fiscal como a existente (e conheço bem a minha fatura fiscal) mas isso não significa alhear-me do contrato político para uma despesa pública rigorosa e proporcionadora de serviços públicos com a qualidade inerente ao esforço fiscal da população portuguesa. Paralelamente, é absolutamente crucial aumentar a base fiscal da economia portuguesa por via da melhoria salarial de modo a captar marginalmente mais famílias para assunção de responsabilidades fiscais. É um tema politicamente impopular? Seguramente que sim. Mas para mim a democracia aprofunda-se com uma relação saudável entre benefícios da despesa pública e o ónus da responsabilidade fiscal.

Por estas razões, o tema da descida de impostos nas eleições de 6 de outubro será praticamente inócuo na decisão final. Politicamente, seria bem mais interessante discutir a fundo a relação entre carga fiscal e qualidade dos serviços públicos, até porque por aí talvez ganhássemos espaço e fôlego para uma boa discussão do peso e do papel do Estado, reorganizando-o em função do novo tipo de desafios que se colocam à economia portuguesa.

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