(A putativa transferência
do INFARMED para o Porto não é mais do que um episódio de uma atribulada e sempre
incerta concretização de uma promessa constitucional, a descentralização do país.
É nesse contexto que
devemos compreender esta mais que provável desgarrada medida)
O anúncio da medida surpreendeu
tudo e todos. Mas na política nacional o que vale afinal o anúncio de uma
medida? Na justificação oficial do governo, a transferência do Infarmed (total,
parcial, para adeptos da descentralização verem, não se sabe ao certo) estaria
decidida simultaneamente com a decisão de patrocinar a candidatura da cidade do
Porto à localização da Agência Europeia do Medicamento. O argumento situar-se-ia
nas vantagens da localização próxima entre agência nacional e agência europeia.
Admitamos que sim. Porquê então este anúncio como coelho que se tira de uma
cartola de um mágico qualquer?
Nestas coisas da descentralização
em Portugal há personagens para todos os gostos. Há os crentes e que não
desligam o desenvolvimento do país de uma visão descentralizada do futuro, que
aspiram a percentagens de despesa pública realizada por níveis inferiores ao de
administração central mais em linha com os valores europeus, tanto mais elevados
quanto se caminha para norte. Estou em crer que são cada vez menos. Incluo-me
no grupo que não confundem descentralização com olhar para o umbigo localista e
que só pretendem ter uma visão sobre o futuro do país concebida de um outro ângulo,
mais descentralizado. Há também os cínicos, falam, falam, falam de
descentralização mas não dão um passo para avançar nesse sentido. E que não estão
dispostos a aceitar os custos da aprendizagem institucional que a descentralização
sempre implica. É de cinismo que estamos a falar quando de repente se quedam
rendidos aos problemas dos funcionários que teriam de deslocar-se, quando nunca
pensaram nos milhares e milhares que são obrigados a uma deslocalização de
sentido contrário, de norte para sul, para manterem o seu emprego, alimentando
a cruzada das sextas feiras ao fim da tarde e dos domingos à noite (segunda
feira de manhã para os mais sortudos). Mas há também os que personalizam a inércia
da intocabilidade da capital e que reagem epidermicamente a qualquer ameaça ao
status quo. Estatutos para todos os gostos e feitios.
Não duvido que no
Partido Socialista e na governação atual haja crentes na descentralização como
critério e indicador de desenvolvimento. Mas os desenvolvimentos que foram
sendo conhecidos sugerem que a posição dominante não está ainda estabilizada. Assim,
o pontapé de saída que foi dado em torno da ideia das eleições diretas nas áreas
metropolitanas de Lisboa e do Porto e a eleição das presidências das CCDR pelas
autarquias são medidas problemáticas para começar. Na ideia das eleições
diretas metropolitanas, não foi devidamente ponderada a questão constitucional
e a complicação não resolvida da classificação das áreas metropolitanas como
autarquias. Nas eleições para as CCDR, creio que não se avaliou bem que o
problema central é o do défice de coordenação intersetorial da governação nos
territórios, para o qual a medida proposta pouco contribui.
Seguiu-se um processo de
negociação com a Associação Nacional de Municípios e municípios (o envolvimento
das CIM parece-me que foi apenas indireto) em matéria de transferências de
competências para os municípios e para as CIM (a partir da delegação daqueles)
que não foi clara em termos públicos. Não é ainda conhecido do ponto de vista
global o resultado desse processo.
Mas há uma ideia central
a que não nos podemos furtar. Discutir, negociar e contratualizar processos de
descentralização em período de consolidação orçamental não é lá muito boa
ideia. Haverá sempre alguém que pense que a transferência de competências se
destina a eximir o estado central de responsabilidades não transferindo meios e
recursos em proporção.
Tenho para mim que a descentralização
em Portugal está muito para além da simples transferência de competências para
a administração local. Para vingar e produzir um resultado equilibrado, deve ser
suportada por uma reorganização territorial do Estado. Ora esse processo exigirá
sempre um processo de deslocalização voluntarista de serviços centrais para
diferentes parcelas do território nacional. O qual não poderá deixar de
reequacionar as leis gerais do trabalho que envolvem a função pública, pois não
conheço nenhuma forma de deslocalização suave e indolor de serviços. Não é um
processo difícil. Há conhecimento suficiente em Portugal para conceber
rapidamente um programa de deslocalização de serviços.
A putativa deslocalização
do INFARMED que parece ter caído do céu tem duas leituras possíveis: ou é algo
inserido num programa a operacionalizar (que se desconhece) ou é uma medida
desgarrada para testar o ambiente. Sabemos que a política por estes últimos
tempos tem seguido frequentemente esta via. Anuncia-se como teste, não como
vontade efetiva.
Como é óbvio, a
interpretação cínica seria a de tentar demonstrar que não é possível a
deslocalização, de modo a tornar as hostes dos crentes menos crentes.
No ponto a que as coisas
chegaram já não me atrevo a opinar o que subjaz ao anúncio. Ver para crer, como
dizia o outro.
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