sábado, 25 de novembro de 2017

DESCENTRALIZAÇÃO




(A putativa transferência do INFARMED para o Porto não é mais do que um episódio de uma atribulada e sempre incerta concretização de uma promessa constitucional, a descentralização do país. É nesse contexto que devemos compreender esta mais que provável desgarrada medida)

O anúncio da medida surpreendeu tudo e todos. Mas na política nacional o que vale afinal o anúncio de uma medida? Na justificação oficial do governo, a transferência do Infarmed (total, parcial, para adeptos da descentralização verem, não se sabe ao certo) estaria decidida simultaneamente com a decisão de patrocinar a candidatura da cidade do Porto à localização da Agência Europeia do Medicamento. O argumento situar-se-ia nas vantagens da localização próxima entre agência nacional e agência europeia. Admitamos que sim. Porquê então este anúncio como coelho que se tira de uma cartola de um mágico qualquer?

Nestas coisas da descentralização em Portugal há personagens para todos os gostos. Há os crentes e que não desligam o desenvolvimento do país de uma visão descentralizada do futuro, que aspiram a percentagens de despesa pública realizada por níveis inferiores ao de administração central mais em linha com os valores europeus, tanto mais elevados quanto se caminha para norte. Estou em crer que são cada vez menos. Incluo-me no grupo que não confundem descentralização com olhar para o umbigo localista e que só pretendem ter uma visão sobre o futuro do país concebida de um outro ângulo, mais descentralizado. Há também os cínicos, falam, falam, falam de descentralização mas não dão um passo para avançar nesse sentido. E que não estão dispostos a aceitar os custos da aprendizagem institucional que a descentralização sempre implica. É de cinismo que estamos a falar quando de repente se quedam rendidos aos problemas dos funcionários que teriam de deslocar-se, quando nunca pensaram nos milhares e milhares que são obrigados a uma deslocalização de sentido contrário, de norte para sul, para manterem o seu emprego, alimentando a cruzada das sextas feiras ao fim da tarde e dos domingos à noite (segunda feira de manhã para os mais sortudos). Mas há também os que personalizam a inércia da intocabilidade da capital e que reagem epidermicamente a qualquer ameaça ao status quo. Estatutos para todos os gostos e feitios.

Não duvido que no Partido Socialista e na governação atual haja crentes na descentralização como critério e indicador de desenvolvimento. Mas os desenvolvimentos que foram sendo conhecidos sugerem que a posição dominante não está ainda estabilizada. Assim, o pontapé de saída que foi dado em torno da ideia das eleições diretas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e a eleição das presidências das CCDR pelas autarquias são medidas problemáticas para começar. Na ideia das eleições diretas metropolitanas, não foi devidamente ponderada a questão constitucional e a complicação não resolvida da classificação das áreas metropolitanas como autarquias. Nas eleições para as CCDR, creio que não se avaliou bem que o problema central é o do défice de coordenação intersetorial da governação nos territórios, para o qual a medida proposta pouco contribui.

Seguiu-se um processo de negociação com a Associação Nacional de Municípios e municípios (o envolvimento das CIM parece-me que foi apenas indireto) em matéria de transferências de competências para os municípios e para as CIM (a partir da delegação daqueles) que não foi clara em termos públicos. Não é ainda conhecido do ponto de vista global o resultado desse processo.

Mas há uma ideia central a que não nos podemos furtar. Discutir, negociar e contratualizar processos de descentralização em período de consolidação orçamental não é lá muito boa ideia. Haverá sempre alguém que pense que a transferência de competências se destina a eximir o estado central de responsabilidades não transferindo meios e recursos em proporção.

Tenho para mim que a descentralização em Portugal está muito para além da simples transferência de competências para a administração local. Para vingar e produzir um resultado equilibrado, deve ser suportada por uma reorganização territorial do Estado. Ora esse processo exigirá sempre um processo de deslocalização voluntarista de serviços centrais para diferentes parcelas do território nacional. O qual não poderá deixar de reequacionar as leis gerais do trabalho que envolvem a função pública, pois não conheço nenhuma forma de deslocalização suave e indolor de serviços. Não é um processo difícil. Há conhecimento suficiente em Portugal para conceber rapidamente um programa de deslocalização de serviços.

A putativa deslocalização do INFARMED que parece ter caído do céu tem duas leituras possíveis: ou é algo inserido num programa a operacionalizar (que se desconhece) ou é uma medida desgarrada para testar o ambiente. Sabemos que a política por estes últimos tempos tem seguido frequentemente esta via. Anuncia-se como teste, não como vontade efetiva.

Como é óbvio, a interpretação cínica seria a de tentar demonstrar que não é possível a deslocalização, de modo a tornar as hostes dos crentes menos crentes.

No ponto a que as coisas chegaram já não me atrevo a opinar o que subjaz ao anúncio. Ver para crer, como dizia o outro.


Sem comentários:

Enviar um comentário