domingo, 5 de novembro de 2017

A CONTROVÉRSIA DOS AFETOS





O Quadratura do Círculo voltou novamente a produzir algum tema de debate relevante, após um longo período de modorra acomodatícia, que nem sequer as tragédias dos incêndios conseguiram interromper. A irritante interpretação de Carlos Andrade sobre o que é notícia ou deve ser interpretado como tal tem chocado vivamente com a agenda de comentário dos três intervenientes, e todos têm a sua, por muito que a queiram escamotear.

Na edição de quinta-feira passada, culminando uma série de pequenas intervenções que o sinalizaram há muito, Pacheco Pereira irrompeu finalmente com a primeira crítica ao aparente unanimismo (sincero e oportunista, noutros quadrantes) que a intervenção do Presidente Marcelo tem suscitado. E fê-lo através do apontar de dedo a que poderia chamar-se a ditadura dos afetos que Marcelo tem exercido, com resultado num índice de popularidade que há muito não se via na cena política portuguesa.

Mas por mais racional que se apresente, Pacheco Pereira não consegue esconder que o estilo e a presença comunicacional de Marcelo o irritam profundamente. Por razões compreensíveis, tão opostas são as suas personalidades. E por aqui teríamos a primeira entrada em que vale a pena ler Damásio: as emoções são do domínio público, os sentimentos não.

Não ignoro que Marcelo é um agente político complexo, assim como não ignoro o contexto do seu passado. Mas não consigo ficar refém desse passado para compreender hoje a sua atuação.

A Presidência de Marcelo acontece num contexto muito particular e o seu mandato tem evoluído em circunstâncias de vida nacional bem particulares. Marcelo chega a Presidente não em plena saída do ajustamento penoso a que fomos submetidos. Mas não é preciso ser um iluminado para compreender que a sociedade portuguesa vinha de uma profunda depressão, com manifestações diversas algumas das quais foram abundantemente discutidas neste blogue. Essa depressão cruza-se depois com uma inédita solução política de governação, a qual deixou em alguns segmentos atónitos da população portuguesa alguma contida perplexidade, senão revolta, que Passos Coelho tentou cavalgar sem êxito, até porque essa reação foi progressivamente esmorecendo. No seio desta evolução ocorrem depois as duas tragédias dos fogos florestais e principalmente um intermezzo entre as duas que certamente ficará na história da democracia política em Portugal como um dos períodos mais intrigantes de inação ou de pelo menos perceção de inação que é possível identificar.

A intervenção de Marcelo a partir de Oliveira do Hospital ocorre neste contexto e depois de uma série de intervenções públicas de responsáveis políticos, incluindo a de António Costa, desastrosas do ponto de vista da capacidade de identificação empática com os que viveram o desespero e a tragédia. Ou seja, perante a apatia do discurso do governo e das forças políticas que o apoiam e o aproveitamento da oposição poderá perguntar-se quais teriam sido as consequências se o Presidente não tivesse realizado aquela intervenção. Positivas seguramente que não seriam. Este é o contexto que importa discutir não o ritual das selfies ou dos beijos, sobre os quais todos poderemos ter opinião.

Não me parece que Marcelo jogue tudo numa ditadura dos afetos e que confunda a governação com os mesmos. Até ao momento e esse é o referencial que temos de integrar, não o seu passado ou pressupostos comportamentos que lhe podemos associar. E o guião que Marcelo tem até agora explicitado é o de um diálogo direto com a diversidade da sociedade portuguesa, não apenas aquela que tem mais fácil acesso aos mecanismos do poder e tem a defesa dos seus interesses organizada. Enquanto não ultrapassar essa linha, a democracia agradece e o governo passa a ter um vigilante para além da expressão parlamentar.

Coincidente com esta controvérsia, António Damásio publica a sua última obra. Sugestiva face aos sinais que o cientista tem deixado em algumas entrevistas como a do P2 no Público de hoje. Há matéria para refletir quando a leitura se consumar. Por exemplo, a sua ideia de que hoje é mais um biólogo do um neurocientista ou que em Shakespeare tem lá tudo. Mas talvez a que mais me interesse, porque se atravessa em algumas das minhas reflexões de um “reflexive practitioner” é a que ressalta desta sua afirmação na entrevista ao Público:

“(…) As pessoas que descobriram o big data falam de como um grupo de computadores pode ler uma enorme quantidade de dados e tirar uma conclusão extremamente nova, verificando que aquilo é o que se deve fazer. Mas isso que o computador está a fazer é aquilo que a intuição humana faz há milhões de anos. O nosso cérebro é um big data system que tem imenso conhecimento do que é a nossa vida interior fisiológica e sobre o que é, e tem sido, a nossa vida em geral. E esse big data system está constantemente a dar-nos um dado institucional que é extremamente importante para a nossa vida. Tudo isso vem do lado das emoções e faz parte do que se poderia chamar inteligência emocional. Não uso o nome porque não acho que haja uma inteligência emocional e não emocional. Há inteligência.”


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