terça-feira, 28 de novembro de 2017

POBREZA E GLOBALIZAÇÃO




(A globalização pode e deve ser objeto de muitas críticas, contundentes, implacáveis. Mas não lhe podemos associar a ideia de que nada aconteceu em termos de pobreza extrema. A informação que hoje existe é um verdadeiro bem público, honra seja feita a quem para ele tem contribuído)

Os movimentos de contestação à globalização, mais ou menos violentos, assentam em juízos de apreciação que, em alguns casos, não correspondem a evidência clara e objetiva. Na sua formulação mais extrema, a globalização é associada à ideia de pauperização dos povos, ou seja, pressupostamente responsável pela intensificação da pobreza extrema e da pobreza absoluta. Noutras formulações, a globalização tende a ser associada ao aumento de desigualdade, na qual teremos de distinguir entre a desigualdade-país e a desigualdade mundial, na qual os indivíduos são considerados independentemente de pertencerem a um país ou outro qualquer.

Nos últimos 20 a 30 anos, é possível confrontar o pretenso racional dos movimentos de protesto (se é que esse confronto adianta alguma coisa) com evidências cada vez mais seguras sobre os fenómenos em presença. A consolidação de bases de informação sobre esta matéria deve-se não só ao trabalho das instituições internacionais e das suas equipas de investigação temática, caso representativo do Banco Mundial, mas também ao trabalho de sistematização e divulgação dessa informação. O já aqui citado OUR WORLD IN DATA, coordenado por Max Roser e associado à Universidade de Oxford e ao INET (Institute for new Economic Thinking) é uma ferramenta integrada neste último grupo e constitui hoje um acervo tratado de informação indispensável à docência, à investigação, à ação política e à reflexão em geral.

Se recorrermos a esta potente base de informação poderemos concluir que, pelo menos nas duas matérias acima mencionadas, os movimentos de protesto contra a globalização estão em desconformidade face às evidências, ou como se diz hoje em negação face ao que os números nos revelam. Não devemos ignorar, como é óbvio, os inúmeros problemas e constrangimentos com que a comparabilidade de dados sobre a pobreza e desigualdade ainda hoje se debate. Mas também não podemos deixar de reconhecer que esses problemas estão identificados e que tem havido progressos na sua correção.

A ideia de que a globalização é responsável pelo agravamento da pauperização em termos de pobreza absoluta e de pobreza extrema não corresponde às evidências disponíveis. Ou seja, o movimento de contestação não é “evidence-based” e bate-se por uma não evidência. O problema não está erradicado. Mas tem sido impressionante a massa de pessoas que têm sido retiradas dessas situações, como aliás o gráfico que abre este post o evidencia bem a propósito da pobreza extrema (link aqui).

Regra geral, esta evidência suscita a contra-apreciação de que haverá aqui um efeito China a considerar. Não podemos obviamente ignorar que a redução da pobreza na China influencia a conclusão, Mas o gráfico abaixo mostra, ainda segundo o trabalho de sistematização do OWID, que a redução da pobreza resiste bem se expurgarmos o efeito China. E podemos concluir algo de ainda mais importante. Por muito que queiramos permanecer fiéis à velha máxima de que crescimento não é necessariamente desenvolvimento, não podemos ignorar a força da relação entre crescimento económico e redução da pobreza, com a evidência de que os ganhos de crescimento foram substancialmente atingidos em ambiente de abertura à globalização económica. A relação entre peso da pobreza extrema e o nível de desenvolvimento económico que o crescimento melhora é bem robusta. E a grande novidade está precisamente aqui: o crescimento económico deixou de ser uma miragem. Claro que devemos estar atentos à grande instabilidade do crescimento do rendimento per capita, aliás como o sempre oportuno William Easterly sempre o assinala. Nestes países, qualquer queda abrupta e imprevista do rendimento per capita tem efeitos devastadores. Mas o crescimento económico não deixa de ser por isso uma espécie de condição necessária para a redução da pobreza, com e apesar da globalização.


Conclui-se, assim, que o movimento de contestação social à globalização deveria procurar um outro lema. Quando muito reforçar a necessidade de erradicação plena da pobreza extrema e absoluta. Mas associando a globalização a pauperização absoluta está em negação com as evidências.


E em matéria de desigualdade?

Aqui, duas perspetivas da desigualdade devem ser referenciadas. Na desigualdade-país, em que se anota o comportamento da desigualdade em cada país, há matéria para contestação social, mas não necessariamente onde estaríamos a pensar como mais provável. Há matéria para contestação nas economias mais avançadas, onde essa desigualdade se tem intensificado. Mas a investigação disponível mostra que associar essa realidade à globalização económica está longe de corresponder ao fator mais determinante. O progresso tecnológico sobrepõe-se, mas vá lá alguém explicar serenamente à contestação social a separação de efeitos entre comércio internacional e progresso tecnológico. Mas poderá dizer-se que, ao nível da contestação social à globalização, interessaria sobretudo considerar a desigualdade mundial, em que todos os indivíduos são considerados como cidadãos do universo e não de cada país em particular. Ora aqui também há novidades. Durante cerca de 200 anos, a desigualdade mundial intensificou-se, ou seja, os rendimentos dos indivíduos à paridade dos poderes de compra divergiram. Não podemos dissociar as diferentes fases da globalização nesse período do observado. Mas com a entrada do novo milénio, entre 2000 e 2013, a situação inverteu-se. A desigualdade diminuiu, mantendo-se alta. O coeficiente de Gini desceu de 68.7% para 64.9%, ou seja, números ainda mais elevados do que os observados nos países mais desiguais do mundo.

O que aconteceu foi essencialmente que em algumas economias avançadas as classes médias foram penalizadas, ao passo que nas economias emergentes a saída da pobreza de uma massa imensa de população trouxe ascensão social e crescimento tímido das classes médias digamos mundiais.

Não se ignora que estamos a comparar o peso da divergência de dois séculos com as melhorias de uma década e meia. Não é coisa pouca. Mas a agenda da contestação social necessita de ser refrescada.

Mas não desanimem os contestatários acerca da desigualdade. A análise de Max Roser mostra que a erradicação plena da pobreza absoluta é possível apenas com uma condição: o crescimento económico necessário tem também de ser mais redistributivo. Ou seja, condição necessária versus condição suficiente.

E aqui está um excelente tema para uma agenda social-democrata e do socialismo democrático renovada. Como podemos conseguir um crescimento económico mais distributivo? Que eu saiba, por duas vias. Primeiro e mais tradicionalmente, pela dignificação e intensificação de políticas públicas distributivas, designadamente as políticas sociais. Mas sabemos que as políticas públicas sociais não são igualmente distributivas de país para país. Mas há novidades positivas nesta matéria. As políticas públicas distributivas têm vindo a reforçar a sua influência, como o mostra o economista americano Peter Lindert no VOX EU (link aqui). Mas há uma outra alternativa, mais inovadora e também mais desafiante. Os modelos de crescimento económico podem ser mais ou menos distributivos intrinsecamente, por exemplo através do seu conteúdo em emprego qualificado e em retribuição do valor da força de trabalho e distribuição dos ganhos de produtividade. Esta alternativa tem sido praticamente esquecida. Mas é importante reerguê-la.

A agenda de renovação da social-democracia e do socialismo democrático foi precocemente enterrada. É o que segundo um outro ponto de vista o sempre arguto Noah Smith no Bloomberg View nos recorda (link aqui).

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