(Não um
obituário, que só os consigo escrever com proximidade, mas antes uma reflexão
talvez “out of the box” e seguramente teoricamente orientada sobre o Grande
Empresário que terminou a sua vida)
Já lá vão mais do que 30
anos (como o tempo passa célere), quando eu e o meu amigo Carlos S. Costa, hoje
governador do Banco de Portugal, publicámos na generosa Afrontamento o ainda
inacabado “Do Subdesenvolvimento –
Vulgatas, Rupturas e Reconsiderações em torno de um Conceito”, dois volumes
dos três que o projeto abarcava. Um dos capítulos da investigação que me deu (e
creio que também ao meu colega de produção) mais gozo foi o capítulo do Entrepreneurship, que traduzíamos na
altura por Função Empresarial. Sem falsa modéstia, antes baseados numa pesquisa
bibliométrica, a nossa investigação colocava pioneiramente em Portugal o tema
do que mais tarde viria a ser batizado por empreendedorismo, tão banalizado nos
últimos tempos. E fazíamo-lo, apresentando a função empresarial como um fator
de desenvolvimento (e também de subdesenvolvimento), mostrando que as formas
que ela podia revestir deviam ser contextualizadas à luz dos padrões culturais
das sociedades, desde os conglomerados empresariais (minuciosamente estudados
por Nathaniel Left) até ao mais puro empresário herói-inovador que Schumpeter
cunhou para sempre. Mostrávamos na altura que a teoria económica dominante era
incapaz de perceber o entrepreneurship
e que os modelos de mainstream
apagavam o empresário das suas formulações, num dos paradoxos mais intrigantes
da economia política. Só os economistas da margem tinham unhas para integrar a
função empresarial e, na altura, Schumpeter não tinha sido plenamente redescoberto
pela literatura da inovação. Começava na altura a ser claro que os jovens
graduados em economia iriam ter um choque brutal quando demandassem os MBA de
maior prestígio. Nas suas licenciaturas, o empresário era um fantasma, apagado
em equações de otimização e de equilíbrio. Nos MBA eram metralhados com a
diferença do que significava a capacidade empresarial. Cheguei a ter ecos de
alunos meus que depois de frequentarem esses MBA reconheciam ter ouvido nas
nossas aulas algo de isolado no contexto da licenciatura, mas que o MBA lhes
tinha mostrado que não tinha sido em vão.
Nesses tempos, era já
visível em Portugal, apesar do contravapor que a revolução de Abril tinha
determinado, a importância dos chamados capitães da indústria. Maria Filomena
Mónica publicará cinco anos mais tarde um artigo na Análise Social, “Capitalistas e Industriais (1870-1914)”
- (Análise Social, vol. XXIII (99), 1987, p. 843) em que essa expressão é
utilizada. A publicação da sua obra, “Os
Grandes Patrões da Indústria Portuguesa” (Dom Quixote) é de 1990.
Nos capitães da
indústria eram percetíveis “self-made men”,
intuição, liderança, capacidade de identificação e concretização de
oportunidades que outros desdenharam ou simplesmente ignoraram, predadores dos
incapazes e incompetentes que se passeavam pelos negócios, registos mais ou
menos socialmente integradores dos trabalhadores e colaboradores. Todas essas
características eram acomodadas pela literatura do entrepreneurship que revelávamos.
Belmiro de Azevedo
introduz neste paradigma uma rotura decisiva. Se consultarmos a biografia que
Manuel Carvalho publica hoje no Público, percebemos que Belmiro partilha alguns
dos traços desses “capitães”, como a indomável determinação gerada a partir de
uma situação de desfavorecimento, a vida austera e simples, a intuição das
oportunidades, o caráter de predador que tanto tem andado arredado da
literatura do entrepreneurship. Mas
Belmiro de Azevedo é um dos primeiros a compreender o valor do conhecimento, da
educação e da formação, a fortalecer-se através desse reconhecimento e a
construir um grupo empresarial que disso tira partido. É por isso um dos
primeiros a cavalgar a onda da transferência (ou translação como agora se diz)
de conhecimento para o mundo empresarial, sendo por isso impiedoso para a velha
Universidade que fugia da proximidade do meio empresarial como gato de água
escaldada (seria bom alguém fazer um trabalho de investigação sério sobre a
criação da Porto Business School e
sobre a influência do empresário nortenho na sua configuração e consolidação).
Alguém com a minha
limitada projeção estaria condenado a não se cruzar com a força irradiada por
Belmiro de Azevedo. Houve uma tentativa gorada, creio que se a memória não me
atraiçoa proporcionada pelo Joaquim Azevedo, de intervir na conceção e
organização do Instituto Educativo que a SONAE haveria de instalar na antiga
EFANOR à Senhora da Hora. Quis o destino, ou mais propriamente o Professor Rui
Guimarães da Faculdade de Engenharia, que me cruzasse com Belmiro de Azevedo, a
pedido dele, para participar num grupo de trabalho que o ajudaria a preparar
uma intervenção sobre urbanismo e habitação, no âmbito de um convite que a
Elisa Ferreira lhe fez para participar numa sessão de discussão pública do
tema. E ainda bem. Nessa altura, o Grande Empresário já não estaria, é certo, no
apogeu das suas capacidades. Mas ainda estavam lá o pensar diferente e fora da
caixa, a independência face ao poder político, qualquer que ele fosse, a
procura incessante do conhecimento e do seu valor, a parametrização constante
do cálculo económico e do retorno do investimento. Três ou quatro reuniões de
trabalho, uma a sós na Fundação, as restantes com o seu corpo de colaboradores
mais próximos, foram suficientes para justificar o cruzamento.
O Público talvez
represente de forma mais expressiva a tal rotura que Belmiro de Azevedo
introduziu face ao paradigma anterior dos Capitães da Indústria, cujo modelo
inicial está em linha com a sua tradição de independência face ao poder
político. Um projeto destes consolida-se mantendo a pureza das suas origens em
função do estilo de direção do jornal, alguém que entenda o sentido da
independência e do rigor que lhe vem associado. Tenho sinceras dúvidas que o
espírito da atual Direção do jornal esteja à altura dessa exigência. Isto pressupondo que Paulo Azevedo honrará os pergaminhos da
herança do Pai.
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