segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A MUNDELL-FLEMING LECTURE




(Os rituais da economia valem o que valem, mas a Mundell-Fleming Lecture da Conferência Anual do FMI tem o peso proporcional ao relevo dos nomes que a designam, com um tema que este ano está no centro do debate da política económica)

Os rituais da disseminação de ideias em economia estão pejados de lições que celebram nomes relevantes da progressão do pensamento económico, quaisquer que sejam os paradigmas económicos em que se inserem. A conferência anual do FMI, e dentro dela a Mundell-Fleming Lecture (link aqui), têm ganho notoriedade e audiência sobretudo na medida em que aquela organização internacional vai dando provas de uma maior flexibilidade na então rigidez do pensamento que por ela é veiculado. A Grande Recessão de 2007-2008 deixou marcas e o FMI, pese embora todas as suas contradições internas, não tem sido propriamente uma instituição surda ao debate. Aliás, é conhecida a mudança de posição (acrítica) que a instituição vinha mantendo quanto às prerrogativas da livre circulação de capitais, matéria em que neste momento tem uma posição mais matizada e seguramente menos apologética.


Pois, a Mundell-Fleming Lecture (link aqui) deste novembro tem duas razões para em convergência merecerem a nossa atenção, mais propriamente o tema e o seu autor. O tema fala por si em tempos de globalização senão bloqueada, pelo menos travada nos seus ímpetos de aprofundamento da integração, económica ao nível das trocas comerciais e financeira ao nível dos fluxos de capitais. A lição deste ano versou sobre a relação entre a política comercial externa (trade policy) e a macroeconomia na sua dupla vertente de crescimento económico (o longo prazo) e as flutuações (o curto prazo). Quanto ao palestrante, Barry Eichengreen (Universidade de Berkeley), é daqueles economistas (historiador no seu core de preocupações) nos quais confio sem hesitações, independentemente de partilhar ou não o paradigma em que se move. Fiabilidade, honestidade, rigor, abertura permanente ao contraditório, e seguramente um dos leitores mais avisados da Grande Recessão (The Hall of Mirrors é um livro de cabeceira para a compreender), são características bastantes para justificar a minha ilimitada confiança. Os leitores portugueses conhecem-no através da versão em português de algumas das suas crónicas no Project Syndicate, publicadas pelo suplemento de economia do Expresso.


Voltemos ao tema. Os efeitos da política comercial externa seja no crescimento, seja na gestão das crises macroeconómicas constituem um tema de eleição para discutirmos a relação entre a economia e a política económica baseada na teoria e as decisões que governos, bancos centrais e instituições como o FMI têm de tomar sobre estas matérias. Regra geral, somos muito severos para estes últimos e bondosos para os primeiros. Os governos reféns das suas agendas políticas são invetivados por fazerem ouvidos de mercador aos alertas da ciência (com as reservas que sempre se colocam às ciências sociais). Os bancos centrais são recriminados por serem escravos de modelos que reagem lentamente à evolução do pensamento. As instituições internacionais têm a sua própria inércia (institucional, claro está), tanto mais evidente quanto mais ser frequente a investigação feita dentro dos seus muros e gabinetes estar claramente à frente das posições de política assumidas e exigidas aos que buscam o seu enquadramento de financiamento ou de resgate.

A esta severidade (justificável em muitas circunstâncias) contrapõe-se geralmente uma posição de compreensão para os produtores de pensamento. O que não é mais, em meu entender, do que uma reação pavloviana de autoproteção da profissão.

Como seria de esperar de um economista em quem se confia, Eichengreen propõe-nos uma lição que, determinada em última instância pela necessidade de produzir pensamento e reflexão que bloqueie as pretensões oportunistas de Donald Trump, introduz nuances muito interessantes sobre a questão que enunciei nos últimos parágrafos.

A abordagem do economista de Berkeley pode ser sintetizada desta maneira. Invocando as posições mais consensuais entre os economistas com Voz e investigação sobre a matéria, pode dizer-se que o protecionismo (direitos aduaneiros sobre as importações) penaliza o crescimento económico e corre o risco, em certas condições, de não estimular a curto prazo a produção nacional e o emprego. Eichengreen podia ficar por aqui e invetivar os que teimam em contrariar o pretenso consenso. Mas não. Ele analisa o que são contra-argumentos e resultados que são desvios face ao consenso. O que é mais importante é que esses contra-argumentos são analisados nos contextos históricos a que respeitam e não como uma pretensa validação intemporal.

Sobre a relação entre protecionismo (uma das dimensões da política comercial externa) e crescimento económico, Eichengreen é muito claro quando traz para a reflexão a evidência histórica (devida essencialmente a um historiador económico dos meus bons e inesquecíveis tempos na FEP, Paul Bairoch), de que na primeira idade da globalização 8até 1913), o protecionismo compensou em termos de crescimento económico. Os economistas rigorosos e honestos (history matters) não podem ignorar a evidência de que o século XIX e inícios do século XX confirmarem uma correlação positiva entre protecionismo e crescimento económico e entre abertura da balança de capitais e o mesmo crescimento económico. Só para o leitor perceber as “razões” do século XIX teremos de compreender que nesses tempos as diferenças de produtividade entre a agricultura e a indústria transformadora eram abissais. Direitos aduaneiros sobre as importações de manufaturados tendiam a favorecer a alocação de recursos de setores menos produtivos para outros mais produtivos e daí o impacto positivo sobre o crescimento económico. Com mais tempo e espaço, não é difícil mostrar que os mesmos argumentos podem conduzir-nos a uma conclusão oposta na situação atual, em que os problemas agrícolas de muitos países resultam da penalização que a agricultura experimenta por distorções de mercado que o protecionismo exacerba. Mudam-se os contextos, muda a conclusão.

No que respeita ao efeito do protecionismo sobre a economia a curto prazo (flutuações do produto), a posição relativamente consensual é esta: no mundo de Mundell e Fleming, com mobilidade internacional do capital e taxas de câmbio flexíveis, a ideia é a de que um imposto aduaneiro sobre as importações é plenamente compensado pela apreciação da taxa de câmbio. Mas Eichengreen, baseado na investigação disponível, mostra que esse consenso aparente pode ser em parte contrariado e alerta para os efeitos de uma maior complexidade de pressupostos no universo de Mundell-Fleming, a qual introduz alterações relevantes ao pretenso consenso.

Em síntese, expliquemo-nos.

Uma coisa é a utilização oportunista da agenda protecionista liderada por um Trump ou um Maduro qualquer. Nesses casos, ninguém de bom senso e dois dedos de testa esperaria que os ditos estivessem atentos ao que diz a investigação económica. Aqui combate-se a demagogia e o non-sense da abordagem.

Outro contexto teremos no quadro de uma política económica efetivamente theory-based. E a pergunta é inevitavelmente a seguinte: estaremos seguros dos argumentos que apresentamos aos decisores ou teremos de ser mais modestos e prudentes sublinhando pelo menos que a política comercial externa é contexto histórico-dependente?

Pela minha experiência, os poderes políticos são acríticos quando encontram na investigação empírica um fundamento para a tomada de posição que querem tomar e disfarçam, assobiando para o lado, quando os fundamentos não lhe agradam. Em ambas as situações o desconforto é grande e a modéstia justifica-se.

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