(Os rituais da
economia valem o que valem, mas a Mundell-Fleming Lecture da Conferência Anual
do FMI tem o peso proporcional ao relevo dos nomes que a designam, com um tema que este ano está no centro do
debate da política económica)
Os rituais da
disseminação de ideias em economia estão pejados de lições que celebram nomes
relevantes da progressão do pensamento económico, quaisquer que sejam os
paradigmas económicos em que se inserem. A conferência anual do FMI, e dentro
dela a Mundell-Fleming Lecture (link aqui), têm
ganho notoriedade e audiência sobretudo na medida em que aquela organização
internacional vai dando provas de uma maior flexibilidade na então rigidez do
pensamento que por ela é veiculado. A Grande Recessão de 2007-2008 deixou marcas
e o FMI, pese embora todas as suas contradições internas, não tem sido
propriamente uma instituição surda ao debate. Aliás, é conhecida a mudança de
posição (acrítica) que a instituição vinha mantendo quanto às prerrogativas da
livre circulação de capitais, matéria em que neste momento tem uma posição mais
matizada e seguramente menos apologética.
Pois, a Mundell-Fleming Lecture (link aqui) deste novembro tem duas razões para em
convergência merecerem a nossa atenção, mais propriamente o tema e o seu autor.
O tema fala por si em tempos de globalização senão bloqueada, pelo menos
travada nos seus ímpetos de aprofundamento da integração, económica ao nível
das trocas comerciais e financeira ao nível dos fluxos de capitais. A lição
deste ano versou sobre a relação entre a política comercial externa (trade policy) e a macroeconomia na sua
dupla vertente de crescimento económico (o longo prazo) e as flutuações (o
curto prazo). Quanto ao palestrante, Barry Eichengreen (Universidade de
Berkeley), é daqueles economistas (historiador no seu core de preocupações) nos
quais confio sem hesitações, independentemente de partilhar ou não o paradigma
em que se move. Fiabilidade, honestidade, rigor, abertura permanente ao
contraditório, e seguramente um dos leitores mais avisados da Grande Recessão (The
Hall of Mirrors é um livro de cabeceira para a compreender), são
características bastantes para justificar a minha ilimitada confiança. Os
leitores portugueses conhecem-no através da versão em português de algumas das
suas crónicas no Project Syndicate,
publicadas pelo suplemento de economia do Expresso.
Voltemos ao tema. Os
efeitos da política comercial externa seja no crescimento, seja na gestão das
crises macroeconómicas constituem um tema de eleição para discutirmos a relação
entre a economia e a política económica baseada na teoria e as decisões que
governos, bancos centrais e instituições como o FMI têm de tomar sobre estas
matérias. Regra geral, somos muito severos para estes últimos e bondosos para
os primeiros. Os governos reféns das suas agendas políticas são invetivados por
fazerem ouvidos de mercador aos alertas da ciência (com as reservas que sempre
se colocam às ciências sociais). Os bancos centrais são recriminados por serem
escravos de modelos que reagem lentamente à evolução do pensamento. As
instituições internacionais têm a sua própria inércia (institucional, claro
está), tanto mais evidente quanto mais ser frequente a investigação feita
dentro dos seus muros e gabinetes estar claramente à frente das posições de
política assumidas e exigidas aos que buscam o seu enquadramento de
financiamento ou de resgate.
A esta severidade
(justificável em muitas circunstâncias) contrapõe-se geralmente uma posição de
compreensão para os produtores de pensamento. O que não é mais, em meu
entender, do que uma reação pavloviana de autoproteção da profissão.
Como seria de esperar de
um economista em quem se confia, Eichengreen propõe-nos uma lição que,
determinada em última instância pela necessidade de produzir pensamento e
reflexão que bloqueie as pretensões oportunistas de Donald Trump, introduz nuances muito interessantes sobre a
questão que enunciei nos últimos parágrafos.
A abordagem do
economista de Berkeley pode ser sintetizada desta maneira. Invocando as
posições mais consensuais entre os economistas com Voz e investigação sobre a
matéria, pode dizer-se que o protecionismo (direitos aduaneiros sobre as
importações) penaliza o crescimento económico e corre o risco, em certas
condições, de não estimular a curto prazo a produção nacional e o emprego.
Eichengreen podia ficar por aqui e invetivar os que teimam em contrariar o
pretenso consenso. Mas não. Ele analisa o que são contra-argumentos e resultados
que são desvios face ao consenso. O que é mais importante é que esses
contra-argumentos são analisados nos contextos históricos a que respeitam e não
como uma pretensa validação intemporal.
Sobre a relação entre
protecionismo (uma das dimensões da política comercial externa) e crescimento
económico, Eichengreen é muito claro quando traz para a reflexão a evidência
histórica (devida essencialmente a um historiador económico dos meus bons e
inesquecíveis tempos na FEP, Paul Bairoch), de que na primeira idade da
globalização 8até 1913), o protecionismo compensou em termos de crescimento económico.
Os economistas rigorosos e honestos (history
matters) não podem ignorar a evidência de que o século XIX e inícios do
século XX confirmarem uma correlação positiva entre protecionismo e crescimento
económico e entre abertura da balança de capitais e o mesmo crescimento
económico. Só para o leitor perceber as “razões” do século XIX teremos de
compreender que nesses tempos as diferenças de produtividade entre a
agricultura e a indústria transformadora eram abissais. Direitos aduaneiros
sobre as importações de manufaturados tendiam a favorecer a alocação de
recursos de setores menos produtivos para outros mais produtivos e daí o
impacto positivo sobre o crescimento económico. Com mais tempo e espaço, não é
difícil mostrar que os mesmos argumentos podem conduzir-nos a uma conclusão
oposta na situação atual, em que os problemas agrícolas de muitos países
resultam da penalização que a agricultura experimenta por distorções de mercado
que o protecionismo exacerba. Mudam-se os contextos, muda a conclusão.
No que respeita ao
efeito do protecionismo sobre a economia a curto prazo (flutuações do produto),
a posição relativamente consensual é esta: no mundo de Mundell e Fleming, com
mobilidade internacional do capital e taxas de câmbio flexíveis, a ideia é a de
que um imposto aduaneiro sobre as importações é plenamente compensado pela
apreciação da taxa de câmbio. Mas Eichengreen, baseado na investigação
disponível, mostra que esse consenso aparente pode ser em parte contrariado e
alerta para os efeitos de uma maior complexidade de pressupostos no universo de
Mundell-Fleming, a qual introduz alterações relevantes ao pretenso consenso.
Em síntese,
expliquemo-nos.
Uma coisa é a utilização
oportunista da agenda protecionista liderada por um Trump ou um Maduro
qualquer. Nesses casos, ninguém de bom senso e dois dedos de testa esperaria
que os ditos estivessem atentos ao que diz a investigação económica. Aqui
combate-se a demagogia e o non-sense
da abordagem.
Outro contexto teremos
no quadro de uma política económica efetivamente theory-based. E a pergunta é inevitavelmente a seguinte: estaremos
seguros dos argumentos que apresentamos aos decisores ou teremos de ser mais
modestos e prudentes sublinhando pelo menos que a política comercial externa é
contexto histórico-dependente?
Pela minha experiência,
os poderes políticos são acríticos quando encontram na investigação empírica um
fundamento para a tomada de posição que querem tomar e disfarçam, assobiando
para o lado, quando os fundamentos não lhe agradam. Em ambas as situações o
desconforto é grande e a modéstia justifica-se.
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