sexta-feira, 17 de novembro de 2017

CONFLITOS E DEMOCRACIA




(O espaço público tem sido marcado nos últimos dias pela presença da conflitualidade social. Qualquer que seja a nossa posição sobre a sua razoabilidade e sentido profundo, é um direito que nos assiste, convém compreender que eles são intrínsecos à democracia; mais uma oportunidade para relembrar aqui a reflexão de um dos patronos deste blogue)

A greve dos professores ocupou nos últimos dias o espaço público das ideias, das reações, da conflitualidade social, da comunicação social. Não vou aqui discutir a razoabilidade da greve e a consistência dos argumentos que a ela conduziram. Não vou também analisar a representatividade da luta entre o corpo dos professores, ou seja o que ela representa do ponto de vista da relação entre sindicatos e professores. Interessa-me apenas a conflitualidade em si, até porque, reza a experiência, qualquer que seja o desenlace do processo reivindicativo, outros processos irão ser desencadeados. O descongelamento de carreiras e a sua acomodação orçamental não se quedarão pelos professores, outros corpos profissionais irão acordar para processos similares. Neste tipo de contexto, não faltarão aqueles que como António Lobo Xavier ou Miguel Sousa Tavares, por exemplo, irão acentuar a clivagem entre trabalhadores do setor público e do privado e, com base nisso, irão realçar a falta de validação social para esta greve. Na verdade, os professores como corpo social têm vindo a perder valor social na sua profissão projetada pelos restantes cidadãos. Em parte por erros de agenda dos seus representantes sindicais, mas também por fenómenos exteriores à profissão e que estão relacionados com a desvalorização do saber, do conhecimento, da aprendizagem. O imediatismo, o utilitarismo, a sobrevalorização continuada do presente, a lenta valoração pelo mercado da qualificação têm feito o resto.

Dizia-me um amigo próximo nos tempos revolucionários dos anos 70 que havia duas profissões em Portugal às quais se paga e nos sentimos dizer obrigado, os padres e os médicos. Claro que o amigo é anticlerical. Mas nos tempos que vivemos acho que devíamos pagar e agradecer aos professores, pois está nas suas mãos a resolução de muito dos nossos problemas. Talvez a desvalorização da profissão passe também por alguns professores que nela estão por razões contrárias à vocação e a estes valores. Talvez. Por isso, não me admira que para além da conflitualidade da própria greve, haja esta outra. Mais do que o descongelamento, os professores deviam preocupar-se em recuperar o seu prestígio e validação social. Claro que prestígio não paga contas ao fim do mês e como são pressionantes estas contas …

Todo este introito para lembrar que em 1994, ou seja não muito longe no tempo, Albert O. Hirschman publicou na revista Political Theory um ensaio chamado “Social Conflicts as Pillars of Democratic Market Society” (Os Conflitos Sociais como Pilares da Sociedade Democrática de Mercado).

A sagacidade de Hirschman materializa-se na identificação do que podemos designar de variedades dos conflitos sociais, distinguindo pelo menos entre conflitos que deixam um resíduo positivo de integração e de coesão social e conflitos que podem dividir a sociedade, enfraquecendo a sua coesão. Pode perguntar-se qual é a raiz e fonte analítica dessa distinção. Curiosamente, ele que costuma ser apontado como alguém que renunciou aos limites apertados da disciplina económica para pensar em termos mais latos como uma espécie de cientista social atento à evolução das sociedades na sua multidimensionalidade, traz para as variedades dos conflitos uma distinção básica da economia: bens divisíveis versus bens não bens divisíveis (indivisibilidade). Assim, para Hirschman, os conflitos que podem deixar um efeito de coesão e integração social são os conflitos divisíveis, ou seja aqueles que são passíveis de aproximação entre as partes e de compromissos, mesmo que evolutivos ao longo do tempo. Pelo contrário, os conflitos que deixam um rasto de perda de coesão são os chamados indivisíveis, por exemplo ser ou não a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Entre 1994 e os nossos dias, ou seja apenas duas décadas e picos passadas, a perceção é que a complexidade dos conflitos não divisíveis tem vindo a intensificar-se e que o contexto histórico-social do artigo de Hirschman alterou-se profundamente.

Dei comigo a procurar interpretar o conflito suscitado pela greve dos professores à luz do artigo de Hirschman. Não me parece que se trate de um exemplo típico de conflito não divisível. Antes pelo contrário. Mas vai ser necessário uma perspetiva dinâmica para compreender o que vai seguir-se. Outros descongelamentos vão provavelmente saltar. Ajudaria que os professores enveredassem por uma gestão proativa da sua perda de valor social. Mas um compromisso vai provavelmente aparecer. O problema é que do lembrado em simultâneo que isso exigirá novas escolhas públicas. E não me venham com a balela de que não haveria restrição orçamental se não existissem as chamadas regras de Bruxelas. Custa-me que gente lúcida, culta e historicamente informada aceitem essa sugestão.

Ponto final: é para mim sintomático que o pensamento de Hirschman vá sendo lembrado por gente lúcida e atenta como Cardiff Garcia no Alphaville do Financial Times (link aqui). É desta carga de “trespassing” que Hirschman tão bem desenvolveu que alguma esquerda em Portugal precisa.

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