(O espaço público
tem sido marcado nos últimos dias pela presença da conflitualidade social. Qualquer
que seja a nossa posição sobre a sua razoabilidade e sentido profundo, é um
direito que nos assiste, convém compreender que eles são intrínsecos à
democracia; mais uma
oportunidade para relembrar aqui a reflexão de um dos patronos deste blogue)
A greve dos professores
ocupou nos últimos dias o espaço público das ideias, das reações, da
conflitualidade social, da comunicação social. Não vou aqui discutir a
razoabilidade da greve e a consistência dos argumentos que a ela conduziram. Não
vou também analisar a representatividade da luta entre o corpo dos professores,
ou seja o que ela representa do ponto de vista da relação entre sindicatos e
professores. Interessa-me apenas a conflitualidade em si, até porque, reza a
experiência, qualquer que seja o desenlace do processo reivindicativo, outros
processos irão ser desencadeados. O descongelamento de carreiras e a sua acomodação
orçamental não se quedarão pelos professores, outros corpos profissionais irão acordar
para processos similares. Neste tipo de contexto, não faltarão aqueles que como
António Lobo Xavier ou Miguel Sousa Tavares, por exemplo, irão acentuar a
clivagem entre trabalhadores do setor público e do privado e, com base nisso, irão
realçar a falta de validação social para esta greve. Na verdade, os professores
como corpo social têm vindo a perder valor social na sua profissão projetada pelos
restantes cidadãos. Em parte por erros de agenda dos seus representantes
sindicais, mas também por fenómenos exteriores à profissão e que estão relacionados
com a desvalorização do saber, do conhecimento, da aprendizagem. O imediatismo,
o utilitarismo, a sobrevalorização continuada do presente, a lenta valoração
pelo mercado da qualificação têm feito o resto.
Dizia-me um amigo próximo
nos tempos revolucionários dos anos 70 que havia duas profissões em Portugal às
quais se paga e nos sentimos dizer obrigado, os padres e os médicos. Claro que
o amigo é anticlerical. Mas nos tempos que vivemos acho que devíamos pagar e agradecer
aos professores, pois está nas suas mãos a resolução de muito dos nossos problemas.
Talvez a desvalorização da profissão passe também por alguns professores que nela
estão por razões contrárias à vocação e a estes valores. Talvez. Por isso, não
me admira que para além da conflitualidade da própria greve, haja esta outra. Mais
do que o descongelamento, os professores deviam preocupar-se em recuperar o seu
prestígio e validação social. Claro que prestígio não paga contas ao fim do mês
e como são pressionantes estas contas …
Todo este introito para
lembrar que em 1994, ou seja não muito longe no tempo, Albert O. Hirschman
publicou na revista Political Theory
um ensaio chamado “Social Conflicts as Pillars of Democratic
Market Society” (Os Conflitos Sociais como Pilares da Sociedade
Democrática de Mercado).
A sagacidade de Hirschman
materializa-se na identificação do que podemos designar de variedades dos
conflitos sociais, distinguindo pelo menos entre conflitos que deixam um resíduo
positivo de integração e de coesão social e conflitos que podem dividir a
sociedade, enfraquecendo a sua coesão. Pode perguntar-se qual é a raiz e fonte
analítica dessa distinção. Curiosamente, ele que costuma ser apontado como alguém
que renunciou aos limites apertados da disciplina económica para pensar em
termos mais latos como uma espécie de cientista social atento à evolução das
sociedades na sua multidimensionalidade, traz para as variedades dos conflitos
uma distinção básica da economia: bens divisíveis versus bens não bens divisíveis
(indivisibilidade). Assim, para Hirschman, os conflitos que podem deixar um
efeito de coesão e integração social são os conflitos divisíveis, ou seja aqueles
que são passíveis de aproximação entre as partes e de compromissos, mesmo que
evolutivos ao longo do tempo. Pelo contrário, os conflitos que deixam um rasto de
perda de coesão são os chamados indivisíveis, por exemplo ser ou não a favor do
casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Entre 1994 e os nossos
dias, ou seja apenas duas décadas e picos passadas, a perceção é que a complexidade
dos conflitos não divisíveis tem vindo a intensificar-se e que o contexto histórico-social
do artigo de Hirschman alterou-se profundamente.
Dei comigo a procurar
interpretar o conflito suscitado pela greve dos professores à luz do artigo de
Hirschman. Não me parece que se trate de um exemplo típico de conflito não
divisível. Antes pelo contrário. Mas vai ser necessário uma perspetiva dinâmica
para compreender o que vai seguir-se. Outros descongelamentos vão provavelmente
saltar. Ajudaria que os professores enveredassem por uma gestão proativa da sua
perda de valor social. Mas um compromisso vai provavelmente aparecer. O
problema é que do lembrado em simultâneo que isso exigirá novas escolhas públicas.
E não me venham com a balela de que não haveria restrição orçamental se não
existissem as chamadas regras de Bruxelas. Custa-me que gente lúcida, culta e historicamente
informada aceitem essa sugestão.
Ponto final: é para mim sintomático
que o pensamento de Hirschman vá sendo lembrado por gente lúcida e atenta como
Cardiff Garcia no Alphaville do Financial Times (link aqui). É desta carga de “trespassing” que Hirschman tão bem desenvolveu
que alguma esquerda em Portugal precisa.
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