sexta-feira, 24 de novembro de 2017

UM DEBATE RECORRENTE




(Em torno das afirmações de Marcelo e Costa sobre a indesejabilidade de um regresso ao passado, que os próprios acabaram por não precisar bem para esclarecimento de todos, lá regressámos ao debate recorrente: o que é que provocou a bancarrota e o resgate financeiro e poderia o país crescer e desenvolver-se sem as baias europeias? Até o Quadratura do Círculo não escapou à armadilha e, pior do que isso, o que não enobrece os participantes, ignorando investigação já publicada em Portugal)

O país continua amarrado a debates recorrentes, que parecem discos de vinyl arranhados, em que a agulha não avança. Tenho uma explicação para isso. Lemos pouco o que os outros escrevem muitas vezes fundamentadamente, ou se quiserem o síndrome da arrogância de partir sempre do zero, fazendo tábua rasa do conhecimento existente. O síndrome é potenciado por outro fator a que temos dedicado pouca atenção. Muita da opinião escrita e falada que por aí aparece é paga. Não fica bem receber o cheque e ser tributário da investigação e das ideias de outros. Logo, construímos uma narrativa em que os nossos argumentos parecem originais. Daí em grande parte o debate recorrente.

O Quadratura do Círculo de ontem foi caótico, tamanha foi a diversidade de pontos em que os intervenientes voluntariamente se colocaram. E muito de debate recorrente por ali apareceu.

As palavras de Marcelo e Costa alertando para a necessidade de respeitar os equilíbrios orçamentais suscitaram dois temas em relação aos quais já poderia haver avanços mais consideráveis na discussão, acaso o síndrome dos debates recorrentes não estivesse aí ativo como nunca.

A invocação do não regresso ao passado suscitou o tema da bancarrota e do resgate, visto pelo prisma do que é que conduziu a esse penalizador resgate. Surpreendeu-me que Pacheco Pereira tenha aderido ao que costumo designar de tese do Bloco de Esquerda sobre o acontecimento. A economia portuguesa e o seu setor bancário e financeiro, e posteriormente por arrastamento global, toda a economia, teriam entrado em crise devido à crise financeira. Acrescido de uma mudança de rumo na gestão macroeconómica europeia, ou seja, estimulando fiscalmente primeiro a economia europeia e, rápida e abruptamente, abandonando depois essa perspetiva e assumindo a austeridade a todo o custo. O teor Bloco de Esquerda da interpretação só se cola à primeira dimensão da interpretação. A segunda corresponde a um grande consenso entre economistas mais críticos da gestão macroeconómica europeia quando confrontada, por exemplo, com a praticada nos EUA.

Senão vejamos. Terá sido a crise financeira o elemento motor determinante da crise da economia portuguesa? Um economista afeto ao BE, Ricardo Mamede (RM), especializado noutras questões e não propriamente um macroeconomista de renome, pensa que sim e até o defendeu num debate televisivo pelo menos com Miguel Cadilhe, que mereceu da minha parte comentário crítico neste espaço.

Têm razão RM e o seu inesperado seguidor PP? Não, não têm. A crise da economia portuguesa, uma pequena economia e aberta “por supuesto”, não nos esqueçamos disso, deve-se a um processo de afetação de recursos profundamente distorcido, orientado em função do binómio não transacionáveis e infraestruturas-imobiliário a todo o preço. Essa distorção de modelo de alocação de recursos é bem anterior à crise financeira, é responsável entre outros aspetos pela anemia do crescimento na década de 2000 e envolveu decisivamente na sua reprodução a banca e o sistema financeiro. Alguém duvida que os processos BPN, BPP e BES-GES não podem ser dissociados dessa distorção? A crise financeira, criando as famosas e penosas imparidades, não fez mais do que precipitar o abismo que estava na calha. Para esse processo, muito contribuiu também a ilusão de que Portugal poderia acolher empresas globais nacionais (PT à cabeça), com a aglomeração de Lisboa e a sua concentração de serviços a viver disso como medicamento-dependente para justificar padrões de investimento público. Recordemos ainda que o grau de exposição da economia portuguesa à crise financeira não tem confronto possível com o maior impacto observado, por exemplo, em Espanha e na Irlanda.

É verdade que o ajustamento bancário e financeiro foi comendo recursos públicos e impostos que os contribuintes pagaram. Mas as imparidades que era necessário cobrir a contento da treta da estabilidade sistémica não podem ser dissociadas da distorção de afetação de recursos que fomos alimentando, alegre e sorridentemente. A esta realidade chamei eu de dupla crise da economia portuguesa, mas estou ciente da minha invisibilidade. Mas outros o demonstraram não necessariamente com estas palavras, com o Professor Fernando Alexandre da Universidade do Minho à frente e não ignoremos também os contributos analíticos do Governador do Banco de Portugal Carlos Costa, em inúmeras intervenções tornadas públicas e disponíveis para consulta.

A segunda parte do argumento está correta. O erro de gestão macroeconómica foi trágico e evidencia bem a dificuldade que alguma macroeconomia tem em impor-se ao ordoliberalismo de base alemã. No após crise financeira, com empresas e famílias a reduzir dívidas, isto é em desalavancagem franca e intensa, colocar o Estado em consolidação orçamental é criminoso, pois não poderia deixar de ter um impacto sobre-recessivo, como aliás aconteceu.

A outra matéria ontem debatida prende-se com a ideia de PP segundo a qual os constrangimentos europeus, designadamente os do Tratado orçamental, estarão a condenar a economia portuguesa à estagnação económica. Primeiro, conviria estabilizar de vez de que constrangimentos estamos a falar. PP não é totalmente explícito nessa matéria. Nunca lhe ouvi uma palavra sobre a permanência ou abandono do euro. É a primeira divisão de águas a estabelecer e admito que PP não seja defensor da saída do euro. Aparentemente são os constrangimentos orçamentais que estão na base da argumentação. Mas o argumento não é totalmente convincente. As debilidades estruturais da economia portuguesa, perfil de especialização, qualificação de ativos, capacidade de gestão e organização, índices de inovação, não se resolvem necessariamente com maior margem de manobra orçamental. Mesmo que adira ao conceito de Estado Empreendedor de Mariana Mazzucato, a sua operacionalização exige mais inovação de processos de coordenação pública do que propriamente despesa pública não limitada. Como Stiglitz costuma dizer não é propriamente uma questão de peso de Estado, mas sim da qualidade da sua intervenção. Claro que para assegurar dimensões amplas de modelo social aí já se trata de peso da despesa e não apenas coordenação e racionalização de processos.

Por isso a ilusão de que um paradigma para além do défice abriria outras perspetivas de crescimento à economia portuguesa é mesmo uma ilusão. Mas há um ponto que PP não discute e que valia a pena discutir. Aí há desconformidade entre as necessidades do nosso estádio de desenvolvimento e o que a União nos oferece. De que se trata? Os países como Portugal atravessam um estádio de desenvolvimento que exigiria uma política industrial ajustada ao nosso estádio de desenvolvimento. Os mecanismos comunitários não o permitem. As instâncias europeias falam hoje de política de inovação e não de política industrial. Mas a política de inovação à escala europeia tende a favorecer a fronteira. É verdade que a política de coesão via Fundos Estruturais dão oportunidade a países como Portugal de mobilizar uma magnitude relevante de recursos financeiros para alocar à inovação. Mas como dizia há dias os Fundos Estruturais parecem frequentemente assumir um papel de dinamização de atividade económica e não de orientação para resultados de inovação. Culpa nossa e das nossas circunstâncias.

Por todos os motivos, não consigo perceber os fundamentos da argumentação de que o crescimento floresceria sem a obrigação dos equilíbrios orçamentais. E reparem que não falei de dívida, pública e privada!

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