(Em torno das
afirmações de Marcelo e Costa sobre a indesejabilidade de um regresso ao
passado, que os próprios acabaram por não precisar bem para esclarecimento de
todos, lá regressámos ao debate recorrente: o que é que provocou a bancarrota e
o resgate financeiro e poderia o país crescer e desenvolver-se sem as baias
europeias? Até o
Quadratura do Círculo não escapou à armadilha e, pior do que isso, o que não
enobrece os participantes, ignorando investigação já publicada em Portugal)
O país continua amarrado
a debates recorrentes, que parecem discos de vinyl arranhados, em que a agulha
não avança. Tenho uma explicação para isso. Lemos pouco o que os outros
escrevem muitas vezes fundamentadamente, ou se quiserem o síndrome da
arrogância de partir sempre do zero, fazendo tábua rasa do conhecimento
existente. O síndrome é potenciado por outro fator a que temos dedicado pouca
atenção. Muita da opinião escrita e falada que por aí aparece é paga. Não fica
bem receber o cheque e ser tributário da investigação e das ideias de outros.
Logo, construímos uma narrativa em que os nossos argumentos parecem originais.
Daí em grande parte o debate recorrente.
O Quadratura do Círculo
de ontem foi caótico, tamanha foi a diversidade de pontos em que os
intervenientes voluntariamente se colocaram. E muito de debate recorrente por
ali apareceu.
As palavras de Marcelo e
Costa alertando para a necessidade de respeitar os equilíbrios orçamentais
suscitaram dois temas em relação aos quais já poderia haver avanços mais
consideráveis na discussão, acaso o síndrome dos debates recorrentes não
estivesse aí ativo como nunca.
A invocação do não
regresso ao passado suscitou o tema da bancarrota e do resgate, visto pelo
prisma do que é que conduziu a esse penalizador resgate. Surpreendeu-me que
Pacheco Pereira tenha aderido ao que costumo designar de tese do Bloco de
Esquerda sobre o acontecimento. A economia portuguesa e o seu setor bancário e
financeiro, e posteriormente por arrastamento global, toda a economia, teriam
entrado em crise devido à crise financeira. Acrescido de uma mudança de rumo na
gestão macroeconómica europeia, ou seja, estimulando fiscalmente primeiro a
economia europeia e, rápida e abruptamente, abandonando depois essa perspetiva
e assumindo a austeridade a todo o custo. O teor Bloco de Esquerda da
interpretação só se cola à primeira dimensão da interpretação. A segunda
corresponde a um grande consenso entre economistas mais críticos da gestão
macroeconómica europeia quando confrontada, por exemplo, com a praticada nos
EUA.
Senão vejamos. Terá sido
a crise financeira o elemento motor determinante da crise da economia
portuguesa? Um economista afeto ao BE, Ricardo Mamede (RM), especializado
noutras questões e não propriamente um macroeconomista de renome, pensa que sim
e até o defendeu num debate televisivo pelo menos com Miguel Cadilhe, que
mereceu da minha parte comentário crítico neste espaço.
Têm razão RM e o seu
inesperado seguidor PP? Não, não têm. A crise da economia portuguesa, uma
pequena economia e aberta “por supuesto”,
não nos esqueçamos disso, deve-se a um processo de afetação de recursos
profundamente distorcido, orientado em função do binómio não transacionáveis e
infraestruturas-imobiliário a todo o preço. Essa distorção de modelo de
alocação de recursos é bem anterior à crise financeira, é responsável entre
outros aspetos pela anemia do crescimento na década de 2000 e envolveu
decisivamente na sua reprodução a banca e o sistema financeiro. Alguém duvida
que os processos BPN, BPP e BES-GES não podem ser dissociados dessa distorção?
A crise financeira, criando as famosas e penosas imparidades, não fez mais do
que precipitar o abismo que estava na calha. Para esse processo, muito
contribuiu também a ilusão de que Portugal poderia acolher empresas globais
nacionais (PT à cabeça), com a aglomeração de Lisboa e a sua concentração de
serviços a viver disso como medicamento-dependente para justificar padrões de
investimento público. Recordemos ainda que o grau de
exposição da economia portuguesa à crise financeira não tem confronto possível
com o maior impacto observado, por exemplo, em Espanha e na Irlanda.
É verdade que o
ajustamento bancário e financeiro foi comendo recursos públicos e impostos que
os contribuintes pagaram. Mas as imparidades que era necessário cobrir a
contento da treta da estabilidade sistémica não podem ser dissociadas da
distorção de afetação de recursos que fomos alimentando, alegre e
sorridentemente. A esta realidade chamei eu de dupla crise da economia
portuguesa, mas estou ciente da minha invisibilidade. Mas outros o demonstraram
não necessariamente com estas palavras, com o Professor Fernando Alexandre da
Universidade do Minho à frente e não ignoremos também os contributos analíticos
do Governador do Banco de Portugal Carlos Costa, em inúmeras intervenções
tornadas públicas e disponíveis para consulta.
A segunda parte do
argumento está correta. O erro de gestão macroeconómica foi trágico e evidencia
bem a dificuldade que alguma macroeconomia tem em impor-se ao ordoliberalismo
de base alemã. No após crise financeira, com empresas e famílias a reduzir
dívidas, isto é em desalavancagem franca e intensa, colocar o Estado em
consolidação orçamental é criminoso, pois não poderia deixar de ter um impacto
sobre-recessivo, como aliás aconteceu.
A outra matéria ontem debatida
prende-se com a ideia de PP segundo a qual os constrangimentos europeus,
designadamente os do Tratado orçamental, estarão a condenar a economia portuguesa
à estagnação económica. Primeiro, conviria estabilizar de vez de que constrangimentos
estamos a falar. PP não é totalmente explícito nessa matéria. Nunca lhe ouvi
uma palavra sobre a permanência ou abandono do euro. É a primeira divisão de águas
a estabelecer e admito que PP não seja defensor da saída do euro. Aparentemente
são os constrangimentos orçamentais que estão na base da argumentação. Mas o
argumento não é totalmente convincente. As debilidades estruturais da economia
portuguesa, perfil de especialização, qualificação de ativos, capacidade de gestão
e organização, índices de inovação, não se resolvem necessariamente com maior
margem de manobra orçamental. Mesmo que adira ao conceito de Estado Empreendedor
de Mariana Mazzucato, a sua operacionalização exige mais inovação de processos
de coordenação pública do que propriamente despesa pública não limitada. Como
Stiglitz costuma dizer não é propriamente uma questão de peso de Estado, mas
sim da qualidade da sua intervenção. Claro que para assegurar dimensões amplas de
modelo social aí já se trata de peso da despesa e não apenas coordenação e
racionalização de processos.
Por isso a ilusão de que
um paradigma para além do défice abriria outras perspetivas de crescimento à
economia portuguesa é mesmo uma ilusão. Mas há um ponto que PP não discute e que
valia a pena discutir. Aí há desconformidade entre as necessidades do nosso estádio
de desenvolvimento e o que a União nos oferece. De que se trata? Os países como
Portugal atravessam um estádio de desenvolvimento que exigiria uma política
industrial ajustada ao nosso estádio de desenvolvimento. Os mecanismos comunitários
não o permitem. As instâncias europeias falam hoje de política de inovação e não
de política industrial. Mas a política de inovação à escala europeia tende a
favorecer a fronteira. É verdade que a política de coesão via Fundos
Estruturais dão oportunidade a países como Portugal de mobilizar uma magnitude
relevante de recursos financeiros para alocar à inovação. Mas como dizia há
dias os Fundos Estruturais parecem frequentemente assumir um papel de dinamização
de atividade económica e não de orientação para resultados de inovação. Culpa
nossa e das nossas circunstâncias.
Por todos os motivos, não
consigo perceber os fundamentos da argumentação de que o crescimento
floresceria sem a obrigação dos equilíbrios orçamentais. E reparem que não
falei de dívida, pública e privada!
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