(Se ilusões existissem sobre o modo como a Espanha das Autonomias estava
politica e sociologicamente assimilada, o aventureirismo do independentismo
catalão encarregou-se de acordar todos os demónios da hispanidade. A leitura de uma entrevista com uma alta
personalidade do já perdido na memória governo de Adolfo Suaréz, anterior à
Constituição de 1978, permite concluir que o culto da hispanidade está vivo.)
A Constituição espanhola que emergiu da transição democrática conseguiu,
não sem dificuldades notórias, acomodar a realidade das autonomias,
distinguindo designadamente entre as autonomias históricas (País Basco,
Catalunha e Galiza) e as não históricas (todas as outras comunidades
autónomas). Pretendiam os pais desse esforço constitucional que a unidade
espanhola não ficasse comprometida e que no respeito pelas particularidades de
um território tão vasto se encontrasse uma outra forma, mais rica e diversa, da
hispanidade. Até certo ponto, o modelo foi funcionando sobretudo no plano
económico, pois as autonomias contribuíram para uma alocação de recursos ao
potencial de competitividade de um território muito diverso que teve reflexos
no crescimento económico espanhol. A evolução que refletiu em Espanha os
efeitos da crise de 2007-2008 e sobretudo a derrocada do sistema financeiro e
bancário espanhol, em que muitas das Comunidades Autónomas estavam alicerçadas
(veja-se, por exemplo, a Galiza) precipitou alguma instabilidade e sérias
dúvidas sobre o modelo de financiamento autonómico. O agravamento da questão
catalã acabou por precipitar todo o resto. E. neste momento, a Espanha das
autonomias está, senão comprometida, seriamente abalada.
Neste longo período desde a entrada em vigor da Constituição democrática, o
culto da hispanidade apareceu muitas vezes confundida com o “madridismo”, tal é a identificação da
hispanidade com a presença e afirmação da capital Madrid. Esta questão teve
extensões para o domínio futebolístico (o confronto Real Madrid-Barcelona pode
ser lido de muitas maneiras), mas ultimamente o inenarrável Lopetegui
encarregou-se de fazer explodir essa conotação do confronto, pois o Real anda
pelas ruas da amargura em busca de uma identidade, futebolística entenda-se. Mas
como sentimento com expressão na política espanhola, essa hispanidade profunda
nunca desapareceu e admitir essa hipótese é um primeiro passo para o erro e
para o descalabro.
O diário digital El Español (o mais lido em Espanha) publicou nos últimos
dias uma relevante entrevista (link aqui) com um exemplo dessa hispanidade
profunda. Vale a pena ler e meditar sobre o que significa a expressão daquela
opinião vincada. Trata-se de uma entrevista com Ignacio Camuñas, ministro com
37 anos do governo de Adolfo Suaréz, é hoje com 78 anos um dos representantes mais
icónicos do que é designada por Plataforma
Espanha Sempre, a qual luta por um Parlamento único, um só Tribunal Supremo
e um governo global para toda a Espanha. Há uma fotografia na entrevista do El
Español que é reproduzida na abertura deste post. Creio que ela é obtida num
dos salões do Hotel Wellington em Madrid onde a entrevista foi realizada. A
decoração da fotografia vale por mil fotografias da hispanidade mais profunda. O
estilo da poltrona, o enquadramento e até a pose de Camuñas são eloquentes.
O título da entrevista é claramente para fazer estragos: “ A Espanha está doente, o seu cancro é o Estado das Autonomias”.
O que Camuñas nos diz é que ele faz parte dos que não ficaram convencidos
com a solução constitucional de 1976: “Nunca
me fui embora. Os políticos são como os atores de teatro. Mantêm sempre a sua
condição, umas vezes com obra em cartaz e outras não”. Camuñas compara os
5% de peso político do independentismo em 1978 com os atuais 40% e insinua que
tal progressão é fruto do próprio modelo territorial e da progressão das
autonomias. O que pode ser uma falácia, pois o avanço do independentismo pode
ser atribuído à insensibilidade do centralismo da hispanidade mais profunda. O
objetivo da Plataforma Espanha Sempre é tão o de obrigar as forças regionalistas
e independentistas a procurar a sua expressão num parlamento único, que reduzia
brutalmente o seu peso político e de limitar a descentralização á autonomia dos
municípios.
Camuñas é muito titubeante quando lhe perguntam como proceder na democracia
espanhola à substituição da Espanha das autonomias por uma Espanha unitária. Como
concretizar essa transição? E no meio de tantas outras afirmações que o
consagram como uma personalidade da direita profunda (curiosa a afirmação de
que Suaréz seria hoje um apoiante do CIUDADANOS) Camuñas não consegue esconder que
a única força parlamentar existente em Espanha que adotaria essa substituição
seriam os representantes do VOX, que estão como se sabe numa deriva de
extrema-direita. E ainda mais ficamos convencidos da sua herança de pensamento
quanto coloca alguns panos quentes e apaziguadores na deriva do VOX, cujo
programa inicial o próprio ajudou a elaborar.
Tenho para mim que um dos piores efeitos do conflito catalão e do aventureirismo
sobretudo do Pd de Cat de Puigdemont, que ameaça constituir outra força política
para escacar o seu antigo partido, foi de fazer acordar demónios da hispanidade
que estavam letárgicos e sem força eleitoral. Não se sabe hoje a real dimensão
eleitoral dessa hispanidade anti Espanha das Autonomias. Esse desconhecimento
favorece o acordar da letargia. A imagem e pose da fotografia que acompanha a
entrevista dizem-nos apenas que ela está lá.
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