(Numa noite um pouco amarga
antecipando resultados das eleições brasileiras, tempo curto para algumas reflexões
em torno da base social que provavelmente levará o recuo civilizacional ao
Brasil. Tenho a sensação estranha de vivermos momentos de
um longo prazo pouco recomendável.)
São momentos assim que me fazem suspeitar de estarmos a viver momentos que
vão fazer parte de um ciclo de longo prazo pouco animador em termos de
democracia, assumindo por isso posteriormente um significado bem menos equívoco
do que o que podem gerar a curto prazo. Foi assim com a vitória do BREXIT. Foi
assim também com a chegada de Trump. O mesmo se passou nas eleições italianas.
E provavelmente será assim com as brasileiras. A tendência será sempre a de
considerar que estamos perante epifenómenos, laterais e que tenderão a
esmorecer. Não estou certo disso, já porque um racional de longo prazo pode
estar em formação.
Como é óbvio não vou falar dos casos de hipocrisia que procuram lavar as mãos
e abster-se sobretudo em função do asco que nutrem pelo PT. Como a nossa Assunção
Cristas. É nestes momentos que as lideranças políticas se definem. Para mim
Cristas já vinha de carrinho há muito tempo. O seu posicionamento face à situação
brasileira é espantosamente claro na sua abstenção indefinida.
A sensação de amargura e impotência não nos deve, porém, inibir de refletir
um pouco mais aprofundadamente sobre a composição do eleitorado de Bolsonaro,
pelo menos a partir do que se conhece dos resultados e pesquisas da primeira
volta. Já aqui enunciei que a grande parcela do eleitorado de Bolsonaro,
digamos em torno de 1/3 da sua base eleitoral, é composta por população dos
estratos mais ricos da sociedade brasileira e de partes da sua classe média que
nutrem pelo PT um asco de morte. Trata-se de população que considera as classes
inferiores e sobretudo negras, índias ou mestiças, gentes inferior e por isso
essa avaliação desses outros encontra no candidato Bolsonaro, no seu discurso e
sobretudo nas suas ameaças, o representante ideal para corporizar esse
desprezo. Este caldo social foi alimentado historicamente pelo padrão
extremamente desigual da distribuição do rendimento no Brasil, pela reprodução
sistemática dessa desigualdade e pela corrupção, cujas raízes são bem
anteriores à ascensão de Lula e do PT. O que certamente não desculpa as tentações
do PT e as suas digressões por caminhos tão ínvios para um projeto
distributivista e popular.
A ascensão de Bolsonaro assenta nessa identificação com os sentimentos de
tais grupos sociais e digamos que pode ser exacerbada seja pela influência de
grande parte das igrejas evangélicas (apesar do apoio de Marina em último
recurso a Haddad) e pela manipulação em massa das redes sociais, sobre as quais
a candidatura de Bolsonaro foi concebida e orquestrada.
Num artigo da Sociological Review que
muito recomendo (link aqui), Matthew Richmond avança com a tese de que a base
eleitoral de Bolsonaro se apoia complementarmente na radicalização à direita de
parte da população com rendimentos muito baixos ou modestos. Baseando-se em
investigação própria realizada nas periferias faveladas das grandes cidades
brasileiras, Richmond avança com argumentos de elevador social induzido pelas
políticas distributivas do PT, traduzido por exemplo no número de jovens
nascidos nessas periferias que frequentam hoje a universidade. Este elevador
social combinado com as questões de insegurança e a insustentabilidade
financeira do programa de pacificação e favelas potencia posições de identificação
com as conceções autoritárias e as promessas de erradicação à força da
criminalidade nas periferias. Uma grande parte desta população agora atraída pelo
autoritarismo de Bolsonaro participou ativamente nas campanhas de rua para a
destituição de Dilma Roussef, mostrando que o seu alinhamento anti-PT vem de
longe.
Não deixa de ser uma ironia da história. O complemento da base social de
Bolsonaro é captada em grupos de população que beneficiou ativamente das políticas
de bem estar social e distributivo do PT e que agora olha mais cima do que para
baixo.
Quisera estar otimista como Pacheco Pereira o escreveu ontem no Público. O
Brasil corrigirá com a sua inventiva este erro colossal. Mas não estou. E nem o
pronunciamento pela defesa do Estado de Direito que o mais alto magistrado brasileiro
leu nas imediações de uma urna eleitoral, com uma defesa acirrada dos princípios
da Constituição brasileira, me tranquiliza. Falaremos sobre isso à medida que
as evidências se acumularem.
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