segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

UMA FOME INSACIÁVEL DE FUTURO

 


(Os Ucranianos não param de nos surpreender e não são pequenas surpresas. A reportagem dos enviados especiais do Público (link aqui), o jornalista João Pedro Pincha e o fotógrafo Miguel Manso, cobriu a passagem de ano em Kiev e foca-se sobretudo na juventude da capital ucraniana: “Uma juventude que recusa abdicar do que tem pela frente dança electricamente contra as bombas. Relato da passagem de ano num lugar em que o mundo esteve suspenso, enquanto em Kiev se ouviam sirenes”. A expressão “fome insaciável de futuro” encheu-me as medidas e não pude evitar confrontá-la com o que é a minha perceção de futuro visível na população portuguesa mais jovem, mesmo que não tenha elementos para uma segmentação completa de todas as situações.

 

Pelo que tenho lido sobre a história da Ucrânia e sem querer forjar aqui a fábula do bom e do mau, dispenso-me de indicar a quem se referem as personagens, a resistência do povo ucraniano a diversas brutalidades perpetradas quer pelos nazis alemães quer pela própria Rússia é real e faz parte da identidade ucraniana. Sei também que, antes de 2014, a Ucrânia era um país de mau desempenho no quadro da antiga União Soviética, que a corrupção não era branda, que o Parlamento não se recomendava e que também por lá pontuavam alguns oligarcas um dos quais levou Zelensky à sua vitória eleitoral. Mas isso não apaga as condições históricas que forjaram a identidade ucraniana e que nessas condições a pressão sentida noutras ocasiões da história reemerge agora através da espantosa resistência que com o apoio ocidental, especialmente americano, se tem manifestado e baralhou completamente a perspetiva inicial de Putin. A ideia da desnazificação da Ucrânia tem vindo a perder força no instável discurso russo, já que apesar de toda a manipulação comunicacional a resistência ucraniana não pode ser mais escondida.

Nas condições mais difíceis que se podem imaginar, por mais que as imagens falem a perceção ocidental está longe de apreender as condições concretas pelas quais a população ucraniana está a passar, a afirmação da confiança no futuro pela população jovem ucraniana, tal como o descreve a reportagem do Público, mergulha-nos na mais profunda perplexidade sobre o que é que as sociedades ocidentais podem gerar em matéria de perceção do futuro por parte dos seus jovens.

Nas populações mais afluentes, a perceção jovem do que são dificuldades não existe. Entre os mais qualificados, a antecipação do futuro passa provavelmente pelas oportunidades no exterior. Elas são muitas, quer porque as condições que barram a ascensão na carreira são bem menos espessas do que as existentes por cá, quer porque os nossos melhores e mais qualificados jovens disputam de igual para igual essas oportunidades. Já quanto aos filhos de uma classe média em dificuldades e com os fatores de elevação social praticamente bloqueados não consigo imaginar qual a perceção de futuro que podem alimentar. E quanto aos que já nasceram na pobreza e não conseguiram através da qualificação escolar e ou profissional quebrar essas trajetórias de exclusão a situação é ainda mais nebulosa, para não dizer negra retinta.

Em contrapartida, paradoxo dos paradoxos, a reportagem do Público transporta-nos a um sanatório abandonado, de arquitetura marcadamente soviética, e aí temos a descrição de uma dança eletrizante de uma massa de jovens a cerca de 20 quilómetros de uma Kiev de novo sob o fogo de drones.

A expressão “fome insaciável de futuro” é certamente dos jornalistas do Público, mas talvez ela seja mais do que evidenciada por aquela festa relatada, com muito álcool à mistura, mas talvez defina uma nova representação da resistência ucraniana.

Atualização a 03.01.2023

A  determinação dos jovens Ucranianos não foi apenas captada pelo Público. Também o Washington Post dedicou uma excelente reportagem ao tema, esta com base numa festa realizada numa cave de um edifício universitário.

 

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