sábado, 21 de janeiro de 2023

MACRON EM CONVERSA COM JAVIER CERCAS

 


(Ontem, quinta feira, não obstante a já habitual crispação política em Espanha, com nacionalismos independentistas à mistura e uma manifestação em Madrid para denunciar o aligeiramento legal que Sánchez está a promover no sentido de não criminalizar o “procès” catalão, o primeiro-Ministro espanhol e Emmanuel Macron assinaram um tratado bilateral franco-espanhol, link aqui, que vai além da simples bilateralidade para relançar os dois países na cena europeia. Não podemos dissociar a iniciativa de ontem da vontade de Macron de utilizar os tratados existentes com a Alemanha e a Itália e agora com a Espanha de se afirmar como a grande liderança europeia, capaz de cimentar uma contratendência a todas as derivas nacionalistas emergentes por todo o lado. No âmbito da preparação dessa cimeira franco-espanhola de 19 de janeiro de 2023, Macron no seu estilo muito particular promoveu uma entrevista no Eliseu, nada mais nada menos do que com um dos escritores espanhóis mais estimulantes dos contemporâneos mais novos, Javier Cercas. Macron em conversa com Cercas ou Cercas entrevista Macron podem ser títulos possíveis para este encontro que o El País reproduziu em castelhano e em francês.

 

A entrevista ou a conversa suscitou-me uma grande curiosidade. Primeiro, porque a escrita de Cercas é entusiasmante. Soldados de Salamina é um grande livro e, mais recentemente, Terra Alta e Independência, com o nacionalismo e a burguesia catalão à perna, são daqueles livros que se leem obsessivamente. As crónicas no El País são também estimulantes, pelo que imaginá-lo a entrevistar ou a conversar com Macron teria de me despertar interesse e curiosidade. Quanto a Macron, bem sei que uma certa esquerda em Portugal (e obviamente em França) o detesta, mas que me perdoe essa gente bem-pensante ou simplesmente maldizente não vejo politicamente na Europa ninguém como Macron capaz de articular e prosseguir um discurso e uma prática minimamente articulados e credíveis para repensar a Europa nos tempos que correm. E isso para mim é suficiente para remeter para o lado a sua passagem pelo mundo da alta finança e a sua atribulada presidência em França. Colocando por agora de lado a questão de saber se é pela via de um federalismo mitigado ou por fórmulas capazes de combinar avanço europeu e preservação dos núcleos identitários mais fortes de cada país e sociedade, a verdade é que não consigo imaginar qualquer reflexão sobre aprofundamentos possíveis do projeto europeu sem colocar Macron no centro desse debate.

A entrevista que o El País publica é de facto um documento poderoso sobre a atualidade política, já que é conduzida por alguém (Cercas) que não esconde o seu apreço pelo federalismo, mas que também reconhece ao Presidente francês autoridade e pensamento para integrar o comboio da progressão europeia.

A carga formal do Eliseu, espelhada seja no mobiliário, seja na tapeçaria, esteve longe de se transmitir à formalidade de uma conversa. Afinal, quando um Presidente, que gosta de boa literatura e a integra no seu próprio projeto de cimentar uma identidade europeia que não arrase os núcleos identitários e irredutíveis nacionais, se encontra com um escritor que não deixa de pensar a envolvente em que se insere é de imaginar que estaremos longe da linguagem diplomática mais estéril.

A conversa tem vários pontos de interesse e longe de mim a ideia de contribuir para a sua não leitura. Gostaria, assim, de destacar apenas alguns aspetos.

Primeiro, tem sido do conhecimento geral que Macron, sem seguir o padrão europeu do apoio à Ucrânia, tem protagonizado uma das mais matizadas posições sobre a Rússia e a sua invasão. Talvez precocemente, Macron encontrou-se mesmo duas vezes com Putin, sem resultados visíveis. A entrevista serve entre outros aspetos para compreender melhor essa posição matizada. Macron avança com a tese da Rússia em crise existencial para matizar a sua posição sobre o conflito: “o que é que a Rússia é hoje e qual é o seu destino? (…) é por esta razão que penso que deveremos sempre, ao mesmo tempo que nos batemos para a Ucrânia resista e ganhe, batendo-nos também para lhe fornecer equipamento, sancionando a Rússia, colocar esta questão a nós próprios, porque não haverá paz duradoura se não acrescentarmos a nossa parte da resposta a esta questão”. Percebe-se onde Macron quer chegar, mas o problema é a dificuldade de dissociar o papel de Putin do grande recitativo da história da Rússia que o Presidente francês quer que compreendamos. E se o ditador está a interpretar esse grande recitativo com grande proximidade ao que os Russos pensam?

Macron envereda depois por algumas dimensões de análise interessante como a afirmação de que a Europa não digeriu plenamente de forma coletiva o pós-guerra fria e a queda do muro de Berlim. O alargamento segundo Macron terá pensado mal o facto dos países que viveram sob a dominação soviética não terem a mesma perceção da crise que os preexistentes ao alargamento. Esta questão levar-nos-ia bastante longe, até porque como hoje é amplamente reconhecido a instalação do mercado nessas economias foi concretizada com custos enormes, que rapidamente transformaram essas sociedades de mundos de relativo subconsumo equitativo para um outro de profunda desigualdade, do qual as figuras dos oligarcas e cleptocratas são os principais protagonistas ainda hoje.

Desta questão à sempre difícil distinção entre nacionalismo (o ódio para com o outro) e patriotismo (a defesa e o amor por um país) é um pequeno passo de equilíbrio difícil de concretizar entre respeitar esse patriotismo e fazer avançar o projeto europeu. Aliás, como a evolução do projeto europeu nos últimos anos o ilustra na perfeição. Esperaria um pouco mais sobre a referência à crise mundial de alguma fadiga das democracias, na qual Macron inscreve os malefícios da financeirização da economia mundial, e sobretudo sobre o papel da União Europeia na desconstrução dessa pretensa fadiga. Sabe a pouco a sua referência de que é necessário recuperar o controlo de um mundo liquidificado (referência implícita à modernidade líquida de Bauman.

Menos satisfatória é a parte em que Cercas confronta Macrom com o elitismo do projeto europeu em oposição ao projeto popular que ele deveria representar. Considerar o euro um projeto popular lança-nos em múltiplas interrogações, ainda que a contestação do mesmo esteja hoje com uma mais baixa intensidade. Talvez a eficácia das vacinas, ponderando mesmo assim a diversidade europeia na abordagem à pandemia, tenha introduzido alguma dimensão popular no projeto.

Na parte final da entrevista, Macron regressa ao seu tema de eleição, o reencontro do projeto europeu com o reconhecimento de cada país: “(…) É isso: é uma narração, é um recitativo. E esta narrativa exige a clarificação da grande trama e dos grandes personagens, mas também o reconhecimento de todas as histórias. E o que torna as pessoas infelizes é a ausência de reconhecimento. Seja económica, financeira ou simbólica ou narrativa. E penso que além de tudo isso o desafio histórico da nossa Europa é responder a esta necessidade de reconhecimento em cada país. O dia em que nas aldeias húngaras, nas grandes cidades polacas, na sua Extremadura ou na minha Picardia natal as pessoas dir-me-ão: “Estas pessoas compreendem de onde venho, quem sou, o que nos une, mas também as nossas diferenças. Elas não querem colocar-me num todo amolecido e assético, em que seríamos todos iguais, no qual não me reconheço”. Nesse dia, eles estarão inscritos nesta narrativa, teremos uma Europa feliz. É isto. Por isso acredito nesta narrativa.”

Em resumo, Macron a rondar os caminhos da utopia europeia, pela interpelação de um grande escritor dos nossos dias.

Quanto ao tratado França-Espanha ele releva do domínio da dimensão dos países. A nós resta-nos a geometria variável da diplomacia sagaz e inteligente.

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