quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

E SE ESTIVÉSSEMOS MAIS ATENTOS AOS BALCÃS?

 


(A onda mediática suscitada pela invasão russa da Ucrânia tem-nos conduzido a sérios enviesamentos de leitura do estado da geopolítica mundial. O foco no conflito ucraniano e os sérios riscos que sobre ele pairam de extensão do mesmo ofuscam outros pontos quentes da situação mundial. É verdade que uma guerra na Europa justifica esse foco, mas também nesse contexto geográfico existem outros lios que à mínima desatenção podem transformar-se eles também em rastilhos incontroláveis. E o pior é que eles próprios são influenciados pelos realinhamentos que o conflito ucraniano suscitou. Estou a referir-me à sempre instável, étnica, política e economicamente falando, zona dos Balcãs, da qual temos descentrado a atenção e a história aconselha a que não o façamos.

 

A atenção que é necessário devolver aos Balcãs é ambivalente. Um regozijo moderado justifica-se, por um lado, com a adesão da Croácia à União Europeia e à zona Euro e integração no Espaço Shenghen. É mais uma companhia de percurso que, nos tempos que correm, reforça a Europa. Mas, por outro lado, passou totalmente despercebido o ultimato da União Europeia (pelo menos foi assim que o Presidente Sérvio Alecsander Vucic assim o designou) (links aqui e aqui) à normalização das relações entre a Sérvia e o Kosovo, depois do incremento de hostilidade suscitada pelo agravamento da situação da população sérvia no Kosovo entre os dois países. Para os Europeus mais incrédulos a simples ideia de que os Balcãs tivessem algum dia estado confortáveis sob a bandeira da Jugoslávia de Tito sempre constituiu um mistério insondável, tamanha e sanguinária foi a sua dissolução e pesados são os resquícios não resolvidos que subsistiram no território.

Em abril de 2013, sob o alto patrocínio da União Europeia, foi assinado um acordo histórico entre a Sérvia e o Kosovo, o chamado diálogo de Belgrado-Pistrina, que tem tido ao longo dos seus 10 anos os seus altos e baixos, com interrupções, recomeços, enquanto prosseguem os trabalhos de desenvolvimento da candidatura da Sérvia à integração na União Europeia. Os acontecimentos que envolveram a minoria étnica sérvia no Kosovo tiveram alguma notoriedade, suscitados por uma aparente questão sem importância, a normalização de matrículas de automóveis, impedido a circulação de viaturas com matrícula sérvia, mas como a história abundantemente nos ensinou, o aparentemente irrelevante transforma-se rapidamente em algo de incendiário. Registaram-se bloqueios de estradas realizados pela minoria sérvia, sobretudo após o reforço da presença da polícia kosovar no território e a prisão de alguns polícias sérvios que haviam abandonado a força policial kosovar. A razão é simples, os problemas estão simplesmente adormecidos. A diplomacia tentou domesticá-los, mas qualquer evento mais ou menos envenenado tem o condão de tudo acelerar, reavivando feridas históricas.

Mesmo nesse contexto, fui surpreendido pela ideia do ultimato económico, que Branko Milanovic que registou no seu blogue substack em 23.01.2023 (link aqui). Rapidamente percebi que foi o próprio Presidente sérvio a registá-lo como tal, que a União Europeia não publicou o texto oficial da missiva endereçada à Sérvia e que mesmo nos portais de informação comunitária o assunto foi ilustrativamente ignorado ou ocultado. O assunto é muito sensível, sobretudo porque o contexto do relacionamento União Europeia-Sérvia se alterou de modo profundo com a nova geopolítica europeia e mundial suscitada pelo posicionamento em relação à Rússia. Além disso, os sérvios têm memória alimentada por uma truculência que o Kusturica dos bens tempos tratou como ninguém. E, em função de graus diversos de frescura de memória, é possível perceber que se trata de um país que reage mal a situações desta natureza. Para os de memória mais curta, convém ter em conta que em 1999, após rejeição do ultimato da NATO, o país e particularmente Belgrado foram bombardeadas durante cerca de três meses. Sim, em 1999, a Sérvia foi bombardeada. Para os de memória menos fresca, convém também recordar que os nazis bombardearam Belgrado em 1941 depois de ter sido frustrada a adesão ao eixo Alemanha-Itália- Japão. E poderíamos ir mais longe à Primeira Guerra mundial.

Milanovic, economista sérvio, descreve com alguma minúcia o difícil momento em que a consciência coletiva sérvia sobre a União Europeia se encontra, com cada vez menos para oferecer a um candidato à adesão. Um ultimato económico neste contexto colocaria sérios problemas a uma economia que tem 2/3 do seu comércio internacional dirigido ao ocidente, de certo modo em rota de alinhamento com uma possível adesão à União. O nacionalismo sérvio não foi erradicado e aguarda por eventos desta natureza para reaparecer em força e, mais do que isso, não é indiferente ao nacionalismo russo. O mesmo, sugere Milanovic, pode acontecer com a economia subterrânea e mafiosa que, num contexto de embargo, encontraria campo fértil para ressuscitar capacidades de disseminação.

Poderão dizer os mais céticos que tudo parece desproporcionado quanto está em causa uma minoria étnica. Mas o que estas memórias históricas mal ou não resolvidas nos ensinam é que a dimensão dos problemas é bastante maisOs que proporcional aos rácios de medida do peso dessas minorias.

O que parece em grande medida cada vez mais indeterminada é a fronteira de delimitação do alargamento da União. Os problemas com a Turquia tinham já sugerido que essa extensão tinha limites sérios e que estava a encolher. Tudo parece ser uma questão de lençol curto para cama tão grande. Não podemos esquecer que a Ucrânia tem pretensões nessa matéria.

Por isso, a questão do alargamento vai estar no coração da nova geopolítica anunciada por estes tempos de guerra. Quem diria e será sempre com uma saudade algo lúgubre que recordaremos o crescimento dourado dos anos 50 e 60 até ao maio de 68.

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