quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

QUALQUER PRETEXTO É BOM PARA NÃO FALAR DA DESGRAÇA DO RECRUTAMENTO POLÍTICO PARA A GOVERNAÇÃO

 

(Hoje poderia escrever sobre o ambiente de degenerescência cada vez mais pesado do recrutamento de quadros para a governação, neste caso do governo de António Costa. As situações vão variando e a degradação das figuras é cada vez mais deprimente. E uma regularidade, invocando evidência adicional do passado, começa a surgir no meu raciocínio. As promoções da vida local para a governação do país estão a correr mal, o que até é injusto para o exercício do poder local, que em meu entender é bem mais credível do que aparenta ser. Mas o caso da Secretária de Estado da Agricultura que não aqueceu o lugar é de bradar aos céus. E a palavra está certa porque a Ministra da Agricultura é também Maria do Céu (Antunes). Pois este convite falhado é um duplo falhanço, porque dá para perguntar, sem ofender, se a convidada era Diretora Regional da Agricultura e Pescas será que terá condições para regressar ao seu lugar anterior? Não me parece. A reflexão levar-nos-ia longe e começa a perceber-se que não é só o estreitamento do campo de recrutamento. Mais do que isso é a degradação progressiva das condições desse recrutamento. Cada cavadela … escrevia eu há dias e pelos vistos estava cheio de intuição.

 

Mas como isto me deprime e muito, não por razões de filiação partidária, mas apenas porque me choca a leviandade de quem convida e de quem aceita, qualquer pretexto seria bom para me dedicar hoje a outro assunto. E ele chegou, talvez um pouco técnico demais, mas retomando ideias já afloradas em posts anteriores. A economia é uma ciência (?) complicada e como eu compreendo os cientistas das disciplinas mais exatas quando sorriem desconfiados para a conflitualidade de interpretações entre os economistas. Isto não significa que a conflitualidade esteja ausente da ciência, mas temos de convir que os economistas usam e abusam …

Já aqui vos tinha trazido a ideia de que a explicação da inflação atual, sobretudo da americana porque tudo aí começou e porque também aí o debate é mais sério, estava a repor a conflitualidade da economia, fazendo-nos regressar a tempos mais acesos em que o confronto se fazia entre paradigmas e não apenas entre o senhor A ou o senhor B, por mais proeminentes cientificamente que A e B o fossem.

Numa série de 8 tweets, alguém bastante prestigiado mas que não é propriamente um incendiário dos debates em economia, Olivier Blanchard, lançou para a mesa não propriamente uma provocação, mas uma perspetiva que me fez regressar aos tempos em que a Escola de Cambridge inglesa considerava indeterminada a distribuição do rendimento na economia na sequência da importância da barganha social entre empregadores e sindicatos.

O primeiro lance de Blanchard dizia o seguinte: “Existe um ponto que é frequentemente esquecido nas discussões sobre a inflação e a política do banco central. A inflação é fundamentalmente o produto de um conflito distributivo, entre empresas, trabalhadores e contribuintes. Ele só termina quando os vários atores são forçados a aceitar esse resultado.” A sequência dos sete tweets restantes pode ser facilmente captada a partir do primeiro, anteriormente reproduzido.

Gostei do que li, mas tenho de confessar que estaria longe de imaginar que Blanchard se saísse com esta tirada e não estamos a falar de ninguém que utilize o Twitter para cavalgar o fútil ou o que não é pensado.

A questão tem mais importância do que parece porque regressámos, como já aqui aflorei em posts anteriores, à velha máxima que a inflação é um fenómeno globalmente monetário, mais propriamente resultado de uma procura globalmente excessiva, questão que no jornalismo económico da vulgata tende a ser descrita pela expressão “economia aquecida”.

A pergunta relevante parece ser a de saber se existe a possibilidade da política monetária mais tradicional ter dificuldade em controlar a escala salários -preços e assim ser obrigada a ir além do nível de restrição necessário da atividade económica, com o óbvio custo de gerar desemprego a mais para conter a subida dos preços.

O debate está aberto na blogosfera económica americana. Chamo a atenção dos leitores mais especializados e com mais apetência para a conflitualidade da macroeconomia para a análise crítica que David Glassner publicou no Uneasy Money, que vale a pena ler com atenção. A análise de Glassner começa pela justa correção de que muitas das crises inflacionárias não têm origem em espirais descontroladas salários-preços, a começar por exemplo pelos aumentos dos preços do petróleo dos anos 70 e que foram tão estudados.

Sugiro também a crónica mais aberta de Krugman, que tem a curiosidade dele comparar o alerta de Blanchard à metáfora de um jogo de futebol americano, com a particularidade de PK referir que a ideia lhe fora transmitida há tempos pelo Nobel de Economia William Nordhaus.

Mas por hoje o que me interessa é destacar que um macroeconomista autor de um dos manuais de macroeconomia mais utilizados na graduação e pós-graduação em economia e que foi economista-chefe do FMI, logo não propriamente um estoura-vergas da comunicação, arrisca, sai da caixa do convencional e convida-nos a confrontar uma ideia que, por vezes, aceitamos de modo demasiado leve. Afinal, a ideia da inflação como resultado de uma procura globalmente excessiva não pode deixar de ser compatível (e, se não o for, abre-se uma nova questão) com processos como o da barganha social, pelo menos nas sociedades democráticas em que a contratação coletiva seja ainda uma realidade.

E com este novo interesse consegui não me deprimir mais com a degenerescência dos processos de recrutamento para a governação. De mal o menos.

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