(Enquanto ninguém se atreve a antecipar se a inflação americana está efetivamente controlada e se aumentou o risco da intervenção restritiva do Banco Central (FED) americano provocar uma desnecessária recessão económica, obviamente com consequências para a economia mundial, uma outra dimensão da economia americana tem uma interpretação mais fácil, pois corresponde ao que de mais tradicional e recorrente tem acontecido no passado. Refiro-me ao comportamento do défice externo e às vias que o financiam, algo que não está ao alcance de muitos e de que os americanos continuam prazenteiramente a utilizar, apesar da já tradicional excitação histérica dos Republicanos quanto aos limites do endividamento da economia americana.
Nunca outro período anterior da economia americana suscitou tamanha interrogação sobre os rumos e duração da inflação como o vivido por estes dias. Depois de se ter esgotado o período em que o debate entre os que viam a crise inflacionista como transitória e os que a antecipavam como algo de duradouro foi claramente ganho por estes últimos, iniciou-se uma outra fase em que o debate se faz à volta se a inflação está (otimistas) ou não (pessimistas) controlada. Pode questionar-se a que é que se deve esta nova oscilação e diversidade de interpretações. Deve-se essencialmente à existência de sinais contraditórios. Mas a importância desse debate está muito para lá da simples questão de saber se a inflação está ou não controlada. O interesse está em avaliar se a atuação do Banco Central americano irá desnecessariamente provocar uma recessão económica (se a inflação estiver já controlada) ou se continua a justificar-se (no caso dela não estar efetivamente controlada).
Os economistas trabalham, regra geral, com “preditores” de recessões económicas, isto é, indicadores que tendem a indicar por antecipação que as recessões irão acontecer. Um dos indicadores preferidos dos analistas é fornecido pelo comportamento das curvas de rendimentos de títulos (as curvas yield), quando as taxas de rendimento a longo prazo passam a ser inferiores às taxas de rendimento a curto prazo. Isso significa que os agentes económicos esperam que as taxas de rendimento a curto prazo desçam estimando que elas estejam atualmente acima do seu valor “natural” em mercado ou que a economia esteja realmente a caminhar para uma recessão descendo as taxas de rendimento. Ora, a segunda metade de 2022 trouxe na economia americana a inversão atrás referida, passando a curva dos rendimentos a longo prazo estar abaixo da curva dos rendimentos a curto prazo. Mas, por exemplo, os indicadores observados no mercado de trabalho continuam a ser incompatíveis com a ideia de que uma recessão está aí à porta. Noah Smith tem uma excelente análise sobre os sinais contraditórios observados nos “preditores” de recessão.
Uma outra maneira de compreender que os economistas estão baralhados quanto à questão da inflação estar ou não controlada é a perceção de que nunca tantos indicadores de inflação foram utilizados como agora para tentar interpretar o que se passa.
Um exemplo desse aprofundamento analítico é dado pelo próprio Krugman que se viu na necessidade de revisitar seis indicadores de inflação: a headline (que é dada pelo comportamento do índice de preços ao consumo e que corresponde à de maior utilização mediática); a inflação central tradicional que exclui a alimentação e a energia e que, por essa via, exagera o peso da habitação; a super inflação central que exclui a alimentação, a energia, os carros usados e a habitação; a superdupercore (designação estranha do próprio Krugman) que inclui a habitação mas através das rendas de mercado e não o índice oficial de preços da habitação e a inflação central dos salários (expressão de Krugmam, wagecore) que mede a taxa de variação de salários corrigida pela diferença entre variação de salários e de preços registada em 2018-19. Todos estes indicadores revelam um comportamento a três meses anualizado bastante aceitável.
Moral da história, nem numa questão básica como a inflação a conflitualidade da economia desaparece. Este é o debate de momento. Vai ou não a economia americana ser sujeita a uma recessão desnecessária para controlar uma inflação já eventualmente controlada?
Entretanto, daí o título do post, há uma outra dimensão da economia americana que continua fiel às evidências do passado e aí a conflitualidade não é económica.
Embora com uma redução recente no 3º trimestre de 2022 no montante de 21.6 mil milhões de dólares, fixando-se em 217.1 mil milhões de dólares no terceiro trimestre de 2022 (média de 247 mil milhões para os três trimestres de 2022), correspondendo a 3,4% do PIB americano, o défice externo corrente continua impávido e sereno a ser financiado a partir do exterior.
Matthew Klein estima (link aqui) que, para os dados conhecidos de 2022, a economia americana teve um financiamento médio líquido a partir do exterior de 347 mil milhões de dólares, fruto do seu estatuto de moeda dominante a nível mundial. Esse financiamento externo revestiu a forma de compras externas de títulos emitidos pelo tesouro americano, de compra exterior de dívida privada americana publicamente garantida, de empréstimos internos a filiais de bancos estrangeiros implantadas nos EUA e empréstimos concedidos pelo exterior a instituições financeiras não bancárias e a empresas privadas. A origem desse financiamento é nebulosa porque as instituições estrangeiras que financiam diretamente o défice externo americano são elas próprias financiadas em termos líquidos a partir do exterior. Ou seja, o sistema financeiro mundial é pouco cristalino.
Mas onde eu queria chegar era a esta ideia muito simples. Por mais riscos que existam da economia americana vir a ser sujeita a uma recessão desnecessária, dadas as limitações da política monetária, em matéria de financiamento externo o défice corrente continua a não ter qualquer problema. Por isso, os que catastroficamente anunciavam o fim do estatuto do dólar terão que rever as suas previsões.
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