(Fonte: ITC Markets citado por Adam Tooze)
(A simples comparação entre o modo como as economias americana e europeia estão a lidar com o cenário inflacionista e com os resultados já alcançados no seu controlo não traz boas notícias para nós europeus. A luz ao fundo do túnel é bem mais nítida no caso americano do que o que nos parece estar reservado. Entretanto, se quisermos invocar os possíveis malefícios de excessos de despesa pública, rapidamente chegamos à conclusão de que o estímulo fiscal de Biden foi bem mais generoso do que o que resultou na União Europeia da política macroeconómica dos seus Estados-membros. Apesar disso, apesar da política monetária americana ter de enfrentar um balão de procura bem mais cheio do que o europeu, quando comparamos os resultados das políticas anti-inflacionárias, é hoje certo que os EUA enfrentam uma probabilidade mais baixa de recessão como dano colateral da política monetária restritiva. Certamente que as causas do surto inflacionário e os mecanismos da sua propagação não são idênticas nas duas economias. Mas dificilmente poderemos ignorar a eterna luta entre “falcões” e “pombas” na condução da política monetária, não perdendo de vista que os falcões e pombas dos dois lados do Atlântico não pertencem necessariamente às mesmas linhagens, têm habitats distintos e são influenciados não necessariamente pelas mesmas correntes de pensamento.
Importa reconhecer que como causa de implosão dos preços a crise energética na Europa decorrente da geopolítica imposta pela invasão russa da Ucrânia trouxe consigo um choque económico bem mais forte do que o observado nos EUA. Mesmo não ignorando que, em contexto de preços baixos para a gasolina, nos EUA qualquer subida de preços, por mínima que seja, abala a rotina dos americanos, a verdade é que o choque energético europeu é mais intenso e duro de debelar. Para isso muito contribuiu a distração alemã e de países vizinhos de brincar à geopolítica colocando-se nas mãos da Gazprom e das fontes energéticas russas, com uma leviandade política que deixará para sempre uma obscuridade no rasto que fica para a história da Senhora Merkel.
Além desta diferença notória, a política monetária europeia enfrenta um contexto de aplicação bem mais adverso do que o colocado ao FED USA. A explicação para essa diferença é simples. A economia europeia, com os seus desníveis de desenvolvimento no seu interior, é bem mais frágil do que a americana. Assim, qualquer ameaça ao crescimento económico induzida pela política monetária mais restritiva destinada a “arrefecer” a economia causa na União Europeia e na zona Euro dificuldades maiores, dada a fragilidade subjacente da economia à qual o BCE pretende impor condições de arrefecimento.
Como corolário lógico desta evidência, as consequências da disputa entre falcões (adeptos de um controlo inflacionário mais rápido, intenso e restritivo, independentemente dos efeitos recessivos que provoca) e pombas (mais apostados numa aterragem mais suave das economias apesar de prolongara inflação mais no tempo) tem efeitos mais danosos na Europa, dada a fragilidade intrínseca das suas economias. Mesmo considerando que as estimativas macroeconómicas para 2023 são mais animadoras do que se esperava, a inflação vai persistindo, dando origem a uma luta intensa entre as correntes de opinião que influenciam a decisão do BCE.
Se admitirmos um predomínio de “falcões” nas decisões do BCE, poderemos contar com uma trajetória regular de subidas de taxas de juro de referência de 50 pontos percentuais durante algum tempo, o que contrastará claramente com as subidas com aumentos decrescentes seguidas pelo FED USA. Alguém relevante no Banco Central dos Países Baixos, Klaas Knot, veio recentemente defender essa posição, invocando o comportamento mais pernicioso da inflação subjacente na Europa em relação aos EUA. Mas o que importa aqui destacar é que a disputa entre essas duas perspetivas não é uma questão estrita de política monetária. Tal decisão não pode deixar de ser tomada antecipando que efeitos o maior endurecimento da política monetária tenderá a produzir nas economias mais expostas às taxas de juro (com a endividada Itália à cabeça) e invocando também o grau de tolerância para o agravamento da desigualdade entre países da União Europeia mais e menos desenvolvidos. Por outras palavras, falcões e pombas não podem ser deixados à solta. A independência do BCE tem de ser cuidadosamente interpretada, já que ela se inscreve numa economia europeia que respira fragilidade por todos os poros.
E lá regressámos nós às origens da inflação europeia, questionando se ela é sempre um fenómeno monetário. Economistas largamente perspicazes como Adam Tooze (link aqui) têm vindo a salientar a ausência de evidência para sustentar que a economia europeia vive um período de excesso de procura global. Comparativamente com os EUA, a economia europeia demorou cerca de oito anos a recuperar os níveis de procura interna (consumo, investimento e despesa pública) observados em 2007. E se é verdade que a recuperação do período do COVID foi vigorosa, existe evidência que a recuperação registada em 2022 ficou abaixo da tendência do período 2012-2020 (Adam Tooze).
Assim sendo, caros Falcões têm de mudar de lentes. Ao longo de 15 anos, a Europa tem vindo a atravessar um longo período de depressão de procura global interna, em parte associada ao facto do conservadorismo fiscal pandémico ter contrastado com alguma exuberância americana de estímulo fiscal (em parte determinada pela ausência da almofada de um Estado Social nos EUA).
O problema é que a idiossincrasia “falcões versus pombas” não é apenas uma questão ideológica (ideias económicas). Ela pode também refletir questões nacionais prosaicas. E uma dessas ideias bastante prosaicas é a que resulta da divergência de taxas de inflação entre os países. Adam Tooze destaca esse aspeto e entendo que tem carradas de razão. A desproporcionada subida de preços entre os Países Baixos (em torno dos 16%) e Espanha (em torno dos 7%) pode perfeitamente justificar um falcão a pairar sobre os diques neerlandeses e uma pomba sobre Castilla.
Mas querer tapar o sol com uma peneira e ocultar a forte controvérsia que enquadra neste contexto qualquer decisão do BCE é um mau serviço ao projeto europeu. Porque, convenhamos, uma coisa é o confronto entre ideias económicas e suas repercussões sobre a vida das pessoas através das decisões de política monetária, cujo escrutínio deve ser o mais exaustivo possível. Outra coisa bem diferente será o facto dos falcões e pombas do BCE refletirem os contextos dos respetivos países.
Por curiosidade, podemos consultar a tabela concebida pelo ITC Markets sobre o posicionamento dos Governadores do BCE (gráfico que abre este post). Centeno é um pouco mais pomba do que Lagarde, salvo seja, o contrário seria um atentado à coerência das suas ideias.
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