(Regresso ao debate sobre o significado de explicar a inflação não apenas como um excesso de procura global relativamente à oferta global disponível e à utilização da política monetária para refrear esse excesso de procura global, mas introduzindo também o tema da barganha social entre empresários e trabalhadores reagindo, à sua maneira, ao aumento de preços – repercutindo os primeiros para a frente o aumento dos seus custos de produção e procurando os segundos aumentar os seus salários nominais para compensar a perda de rendimento real ou poder de compra. O interessante da questão, interessante, mas de grande complexidade, está no facto dessa barganha social acontecer simultaneamente com a política restritiva do banco central, convidando por via do aumento das taxas de juro de referência o sistema bancário a oferecer menos crédito. O post de hoje discute algumas dessas fontes de complexidade.
Entendamos, entretanto, uma ideia inicial. O surto inflacionário que nos apoquenta em todas as economias ocidentais, com graus diversos, é certo, mas de forma generalizada, não tem na sua origem um conflito distributivo ou o extremar da barganha social. Pelo menos na economia americana, a explicação mais objetiva parece ser esta: no rescaldo da pandemia, seja por fruto dos estímulos económicos dirigidos às famílias, seja por recurso a poupanças acumuladas, o consumo aumentou a procura global que não encontrou, devido às disrupções de oferta provocados pela pandemia e confinamentos, a oferta disponível com capacidade de resposta suficiente. A esse excesso de procura global juntaram-se depois as inúmeras disrupções também de oferta provocadas pela invasão russa da Ucrânia, com relevo para os produtos energéticos.
A haver influência do efeito da barganha social ele acontece depois. Os preços aumentaram como não era sentido já há longo tempo e é natural, por isso, que as condições da barganha social se tenham alterado e uma nova procura de equilíbrios. Acontece também que, na grande maioria das economias, os mercados de trabalhos estavam tensos, ou seja, com níveis de desemprego baixos. Por isso, com o nível de desemprego baixo e escassez de força de trabalho por motivos demográficos, existem melhores condições para um movimento ascendente de salários nominais. É certo que as empresas, pelo menos as que possuem algum poder de mercado, podem sempre mais facilmente repercutir para a frente os aumentos de preços do que os trabalhadores alterar ascendentemente os seus salários. Por isso, se diz que, regra geral, a inflação desequilibra a distribuição funcional do rendimento a favor dos lucros e em detrimentos dos rendimentos do trabalho.
Mas há aqui dois problemas. Primeiro, se a barganha social for reatada (e aqui é conhecida a quebra de percentagem de trabalhadores sindicalizados), ela vai acontecer em simultâneo com a política restritiva do banco central que ensaiará a redução da procura global e isso significa quase sempre uma tendência recessiva potencial. Segundo, não podemos esquecer que hoje essa barganha social é um processo muito fragmentado e não segundo um modelo em que a uma dada mesa patrões e sindicatos negoceiam a variação possível dos salários nominais, impondo-se a toda a economia. Podemos ter por isso variações nominais de salários muito diferentes de setor para setor e mesmo de empresa para empresa.
Além disso, não consta que os bancos centrais participem, nem como observadores, nessa mesa de negociação imaginária. Não só não participam, como definem, dizem os mais ortodoxos, com independência, o panorama futuro de subidas de taxas de juro, procurando estabilizar as expectativas. Ou seja, patrões e sindicatos, levam com uma maior restrição da atividade económica realizada para refrear a procura global e aproximar o ritmo de variação de preços da famigerada meta dos 2%. Pode assim perguntar-se por que razão esta triangulação que não é feita à mesma mesa, mas em duas mesas, atingirá um equilíbrio, aceitando patrões e trabalhadores uma variação do salário nominal que corresponda à estabilidade de variação de preços desejada pelo banco central.
Este tema ainda não razoavelmente internalizado pelas teorias explicativas da inflação mais correntes choca, assim, com o plano diferente em que se desenrola a política do banco central (macroeconómico para controlar a procura global) e aquele em que a barganha social é desenvolvida (no plano setorial ou até no plano microempresarial).
O que significa que restringir todo o processo ao mantra da política monetária restritiva para controlar o excesso de procura global talvez seja uma limitação exagerada do comportamento real da economia quando emerge um surto inflacionário.
E, como referia no último post, o problema é que quanto mais tardia for a convergência entre o clima de barganha social e as decisões do banco central, mais aumenta a probabilidade de tudo “se resolver” apenas depois das consequências fortemente recessivas do produto global da economia se terem confirmado. Por isso, gente respeitável considera que os bancos centrais não podem estar obrigados apenas ao mantra da estabilidade dos preços. Devem também considerar nos seus juízos a variável do emprego e do nível de atividade económica. Sabemos que a ortodoxia monetária impôs que o Banco Central Europeu estivesse no primeiro grupo. O seu mandato resume-se à estabilidade dos preços (referencial dos 2%).
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