(2022 com a disrupção introduzida pela invasão russa da Ucrânia trouxe-nos a inexorável confirmação de que nada seria como o dantes próximo em matéria de relações internacionais. Os EUA acabavam de abandonar o Afeganistão à sua sorte, deixando-nos perplexos e inquietos sobre o que poderia ser o seu posicionamento no mundo e já os fantasmas de reedição de uma Guerra Fria à moda do nosso tempo entravam nos nossos horizontes prospetivos. Mas a complexidade geopolítica do xadrez mundial que temos pela frente, nele incorporando a batalha económica pela superioridade tecnológica no futuro próximo, é sobretudo determinada pelas interrogações do posicionamento face à China, essencialmente dos EUA. O posicionamento da Europa neste mesmo xadrez exigirá tratamento à parte, dada a diferença de poderio tecnológico que ostentamos face aos EUA, pelo que falar de triangulação roça a ingenuidade.
Gideon Rachman, cronista habitual no Financial Times, tem usualmente reflexão estimulante sobre a geopolítica mundial, normalmente bem informada, que nos ajuda a compreender os rumos por onde passa a grande política.
É o caso do seu último artigo, que tem o título provocador de “Parar o crescimento económico da China não pode ser um objetivo para o ocidente”. E o subtítulo não é menos estimulante: “Dissuasão e comércio têm de evoluir a par”.
Rachman começa por nos recordar o óbvio. As relações entre a China e os EUA azedaram sobretudo depois de se tornar evidente que a liderança chinesa não esqueceu a anexação de Taiwan. Apesar do posicionamento chinês no conflito russo-ucraniano ser o menos inequívoco possível, a administração de Biden manteve praticamente o que recebeu de Trump. A China é vista como um rival sistémico dos EUA. Também a política externa britânica tem persistido na consideração da China como uma ameaça real. A União Europeia tem-se movimentado com dificuldade neste campo minado. Basta compreender o lio em que a economia alemã se encontra relativamente à presença da China na economia global, seja como destino de investimento direto estrangeiro alemão, seja como fonte de importação de produtos intermédios para a indústria alemã. A União Europeia tratou com pinças a posição americana e também britânica relativamente ao gigante tecnológico da Huawei.
Mas como Keynes habilmente nos ensinou no pós-1ª e 2ª Guerra mundiais, deve ser em função do equilíbrio económico mundial que a política económica externa tem de ser equacionada. Qualquer pretensão para a formular exclusivamente com base em posições que tendam a prazo a gerar desequilíbrios na ordem económica internacional, mesmo que satisfazendo no curto prazo interesses nacionais justificados, tende a dar para o torto e a voltar-se contra quem beneficiou a curto prazo.
É essa ideia que orienta o artigo de Rachman. Se na altura em que Keynes participava nas negociações que haveriam de conduzir ao Tratado de Versalhes para discutir as reparações de guerra e indemnizações que a Alemanha deveria pagar depois da 1º Guerra Mundial e também na altura em que se preparava a ordem económica internacional no rescaldo da 2ª Guerra Mundial já se justificavam as preocupações com a interdependência das economias, por uma larga maioria de razão, hoje, essas preocupações deveriam ser redobradas.
Uma economia chinesa em recessão é hoje um passaporte para uma recessão mundial quase imediata e se a recessão atingir o setor imobiliário chinês a probabilidade do sistema financeiro global entrar em colapso é enorme, dadas as interdependências existentes, apesar das disrupções de que a globalização vem padecendo.
As implicações para o equilíbrio mundial serão salientes, a começar, por exemplo, pelos avultados investimentos chineses em África e nas Américas, incluindo a América Latina.
Rachman sublinha a existência nos tempos que correm de dois modelos inspiradores da diplomacia internacional – o modelo baseado na globalização que necessita, seguramente, de ser reparado, sobretudo na sequência de uma pandemia e de uma guerra e o modelo baseado na competição entre os grandes poderes mundiais.
O problema é que do ponto de vista do posicionamento da China para a estabilidade mundial ele é marcadamente ambivalente, do tipo preso por ter cão e não ter. Explico-me. A China pode ser uma ameaça continuando a crescer aos ritmos a que já cresceu, já que pode canalizar excedentes para objetivos incompatíveis com a paz mundial, designadamente o investimento militar e a ajuda a países menos recomendáveis. Mas uma China em colapso não é uma ameaça menor para esse equilíbrio mundial.
É mais fácil compreender a lógica da argumentação de Rachman, do que aplicá-la em termos concretos, já que como o próprio Rachman o reconhece, ela envolve questões militares, tecnológicas, económicas e diplomáticas. Ora, nem sempre é fácil encontrar posições convergentes em matérias tão díspares. Exemplificando, combater o militarismo chinês, que impressiona, não é exatamente a mesma coisa que trabalhar com a evidência de que já hoje a China é o principal parceiro comercial da generalidade dos países localizados na zona do Pacífico e do Índico.
A questão que me parece mais sensível no tempo imediato vai ser a batalha tecnológica. Tal como a investigação e desenvolvimento está hoje organizada, sobretudo nos EUA, largamente concentrada em consórcios empresariais de grande dimensão para arcar com os custos dos investimentos iniciais na produção de novas ideias (caso, por exemplo, da saúde e das ciências da vida), o apoio público à guerra dos avanços tecnológicos acabará por traduzir-se no benefício sistemático a grandes conglomerados empresariais.
Um conselheiro de Biden para as questões tecnológicas, Jack Sullivan afirmava há dias o seguinte na discussão sobre um relatório submetido à administração Biden: “Argumentei que depois da onda liberalizadora de inovações da internet dos primeiros tempos e depois da contrarrevolução autoritária dos anos 2000, quando os nossos concorrentes e adversários ganharam vantagem sobre a nossa complacência e inerente abertura devemos diligenciar no sentido de uma “terceira vaga” da revolução digital – de maneira a assegurar que as tecnologias emergentes servirão , e não prejudicarão as nossas democracias e segurança”. Percebe-se a preocupação americana e são conhecidas as suas prioridades: (i) tecnologias relacionadas com a computação, incluindo a microeletrónica, os sistemas de informação quânticos e a inteligência artificial; (ii) biotecnologias e biomanufacturação; (iii) tecnologias de energia limpa.
A pergunta matreira não pode deixar de ser colocada: manter as opções americanas tecnológicas na frente e assegurar a superioridade na liderança das tendências não se transformará na recetividade à ideia da barragem ao crescimento económico chinês?
Entendem por certo aonde pretendo chegar. É que assegurar coerência às dimensões militares, económicas, tecnológicas e diplomáticas tem que se lhe diga e, muito provavelmente, nem todas serão igualmente sensíveis ao argumento de que o fundamental é manter o equilíbrio mundial, isto se não quisermos viver permanentemente em guerra.
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