terça-feira, 17 de janeiro de 2023

O CINEMA À SOLTA

Após algum tempo de uma inexplicável quarentena pessoal, regresso ao cinema em sala (na realidade, na sala VIP das Amoreiras) para ver um filme já bastante badalado e premiado mas que não esperava tanto. Por isso afirmo que importa visualizá-lo para uma verdadeira assunção do que ele é e representa, para além da confirmação da reconhecida genialidade artística de Steven Spielberg e da prestação enorme de Michelle Williams.

 

Refiro-me a “Os Fabelmans”, o relato de parte da história de uma família de imigrantes judeus russo-ucranianos nos EUA, afinal também a história por interpostas personagens da infância e juventude de Spielberg no seu caminho para a realização cinematográfica. Sendo que o mais fascinante está no modo como o autor, tendo sempre o papel do cinema por pano de fundo, fala de si próprio e da vida dos seus pais (a mãe, uma pianista autocentrada que acaba por se dedicar aos filhos e à família até assumir outros amores; o pai, um brilhante engenheiro informático dos tempos iniciais que acaba por condicionar toda a organização familiar em função das vicissitudes da sua carreira). Só que não se trata, como muito bem sugeriu Francisco Ferreira no “Expresso”, de folhear, cena atrás de cena, “o mesmo álbum de memórias pela enésima vez”, antes sim de um descritivo que resulta marcado por um instante daqueles que fazem toda a diferença entre a vulgaridade e o talento: aquele em que o miúdo Sammy percebe incrédulo, por via de uma montagem do registo feito com a sua câmara, uma aproximação entre a mãe e o melhor amigo do pai; um instante “em que o cinema, em vez de o fascinar, vai começar a aterrorizá-lo: um choque frontal com a realidade”. E a força máxima está, em termos emocionais, naquele momento em que o miúdo fecha a sua mãe numa pequena sala escura e lhe projeta sem mais, para testemunho próprio, aquilo a que ele tinha acedido sem querer.


Acompanhando este salto qualitativo, tudo o resto, que é muito (dos detalhes da vida caseira e familiar às suas forçadas mudanças geográficas, do bullying no liceu às cenas hilariantes com a namorada católica, da sucessiva atração pelo cinema ao encontro com John Ford), sobe de escala nesta história inexcedivelmente bem contada e em que Spielberg decide corajosamente revelar-nos um segredo que tinha guardado ao longo de décadas, não deixando de paralelamente explicitar (como bem revela, aliás, a duradoura e nunca acabada amizade dos seus pais separados) quanto “a culpa é uma emoção desperdiçada”. Religiosamente, um filme a não perder!

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