quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

VAI A ESTAGNAÇÃO SECULAR REGRESSAR?

 


(Na sequência da crise financeira de 2007-2008 e da recuperação agónica que se lhe seguiu, a referência ao conceito de estagnação secular representou uma das manifestações mais estimulantes da ciência económica que se recusa a entrar pelas trevas da chamada “dismal science”. Na altura, foi curioso anotar como um conceito dos anos 30, popularizado por Alvin Hansen e sobretudo centrado em questões demográficas foi renovado por um economista pujante como Lawrence Summers que se encarregou de colocar o conceito na agenda do debate das ideias económicas, aliás com grande êxito e abundantemente acolhido neste blogue. Do debate então realizado, que animou bastante a academia e a blogosfera americana (a Europa anda sempre a reboque dos impulsos americanos), ficou provavelmente a ideia errada de que a “estagnação secular” era um conceito circunscrito ao contexto do “zero lower bound”, taxas de juro nulas ou negativas. Quando para mal dos nossos pecados de economia periférica e pobretana a inflação irrompeu, mais terá ficado enraizada a ideia de que a “estagnação secular” seria daqueles conceitos e ou abordagens que se desenvolvem num contexto muito próprio, mas que não resistem às exigências do tempo longo. Entretanto, um nome muito importante da macroeconomia, Olivier Blanchard, parece não estar muito pelos ajustes e regressou com a provocação “Secular stagnation is not over” (link aqui) (A estagnação secular não acabou). O que não deixa de ser curioso quando o próprio Summers pensa o contrário.

 

Se a recuperação da crise de 2007-2008, que se juntou perigosamente na Europa do Sul à crise das dívidas soberanas, se pautou por uma certa agonia de crescimento (recuperação anémica), o seu prolongamento no tempo colocou os economistas de mainstream numa certa perplexidade. Não parecia fácil explicar essa anemia de recuperação. Simultaneamente, alguns economistas interrogaram-se se as taxas de juro nulas ou negativas não corresponderiam a taxas de juro de equilíbrio, apontando assim para uma situação estrutural diferente da habitual, traduzida no facto das previsões de taxas de juro a longo prazo revelarem uma acalmia também inesperada. A estagnação secular corresponderia, assim, a um contexto em que a taxa de juro seria inferior à taxa de crescimento económico (r<g). Certamente que também alguns economistas tinham percebido que o mundo vivia na altura num contexto de excesso de poupança para os investimentos disponíveis de risco baixo, com as poupanças asiáticas a pontificarem nesse contexto. Mas ninguém como Lawrence Summers propôs uma explicação tão global e coerente como a que resultava de ressuscitar o conceito de Alvin Hansen e mostrar que a procura global sofria nas economias avançadas de um bloqueamento estrutural. Nesses termos, só uma política seletiva mas massiva de investimentos públicos bem desenhados poderia resolver o problema, música celestial para países com forte défice de infraestruturas, mas música perigosa e ruidosa para economias como por exemplo a nossa, em que a dotação infraestrutural era melhor do que a expectável com o nível de desenvolvimento económico alcançado.

É verdade que o próprio Lawrence Summers pareceu desinteressar-se da sua própria conquista, em parte explicável, primeiro, pela ocorrência de uma pandemia que veio alterar radicalmente o contexto em que as taxas de juro nulas ou negativas eram discutidas e, depois, pela disrupção inflacionista associada simultaneamente à recuperação da pandemia e à guerra na Ucrânia. Summers não é hoje um académico interessado num plano de investigação isolado do estado da economia americana que o cerca. É alguém essencialmente interessado em colocar o seu conhecimento e inteligência ao serviço da explicação do que ele pensa serem desequilíbrios potencialmente perigosos. Foi assim que, à medida que se desinteressou do debate sobre a estagnação secular, começou a emitir juízos críticos sobre o alcance potencialmente inflacionista do estímulo fiscal que Biden lançou na economia americana para combater os efeitos recessivos da pandemia. E, obviamente, apostou as cartas todas em mostrar que os que defendiam o caráter transitório da inflação estavam errados.

É por estas razões que a posição de Olivier Blanchard merece por si só a abertura de um debate. A reinvocação do conceito de estagnação secular parece uma provocação sobretudo para quem está a sofrer na pele os efeitos das subidas das taxas de juro (r>g) e, embora sendo uma outra conversa, vê os bancos a retardar indecentemente a subida das taxas de juro das operações passivas, as taxas de juro dos depósitos. Dirão alguns, malevolamente diria eu, que isso se deve ao facto de Blanchard acabar de publicar uma obra intitulada “Fiscal Policy under low interest rates”, que parece uma dissonância de contexto.

Blanchard vai à luta referindo que não é líquido que os fatores antes do COVID que rebaixaram estruturalmente a procura global não regressem de novo, após os bancos centrais terem controlado, como se estima que venha a ser em breve possível, a inflação. O mundo poderia voltar assim a um período de baixas taxas de juro correspondentes a investimentos seguros e de risco aceitável. E apresenta números. A economia americana apresenta hoje uma taxa de juro nominal de títulos do Tesouro a 10 anos de 3,4%, para uma estimativa de inflação a 10 anos de 2,4%, o que aponta para uma taxa real de juro a 10 anos de apenas 1,0%. Do ponto de vista das forças estruturais que têm puxado a poupança global para cima (o envelhecimento da população e aumento de esperança de vida à nascença que tende a levar as pessoas a poupar prudencialmente mais) e o aumento de rendimento (em termos absolutos e pelo aumento da desigualdade) que implica também aumento de poupança (os mais ricos libertam mais recursos para poupança do que os mais pobres), nada de importante se alterou. Por essa via, é provável que o regresso ao pré-COVID 19 reponha as taxas de juro baixas para investimentos seguros. E, sem aderir ao catastrofismo inconsequente, o progresso tecnológico não tem brilhado tão insistentemente que nos conduza a uma intensificação da procura global por via do investimento.

Costumo salientar que este ambiente de taxas de juro baixas para investimentos de risco aceitável acarreta um perigo potencial para as economias. Os maluquinhos das grandes rendibilidades são frequentemente, neste contexto, levados a enveredar por investimentos “amalucados”, de risco máximo, à procura de uma glória vã. A propensão para o empolamento dessa franja mais especulativa da economia pode gerar uma sequência imprevisível de pequenos crashes. No fundo, microssismos, que regra geral não passam disso, mas nunca fiando …

Moral da história

O conceito de estagnação secular talvez não deva ser precocemente relegado para um museu das ideias económicas. A sombra de Alvin Hansen continuará a pairar sobre nós. Summers, distraído com outros temas de momento, talvez ele próprio regresse, estimulado pela provocação de Blanchard. Estaremos atentos.

 

 

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