domingo, 22 de janeiro de 2023

A NÃO SURPRESA DO DECLÍNIO DEMOGRÁFICO CHINÊS

 


(Os últimos dados demográficos publicados pelas autoridades chinesas causaram algum alarido por esse mundo fora. É verdade que os observadores mais atentos tinham sublinhado a descida da taxa de fertilidade chinesa nos últimos anos. Mas, como os demógrafos costumam realçar, essa descida das taxas de fertilidade não é imediatamente seguida de um movimento de descida de população, sobretudo em países de grande massa demográfica como a China. Mesmo com a taxa de fertilidade a descer, o número de mulheres jovens em idade de procriação é elevado durante algum tempo e isso tende a retardar o declínio demográfico. Mas as autoridades chinesas acabam de anunciar a descida da população em cerca de 850.000 almas, o que sugere que esse tal período em que a descida da taxa de fertilidade coexiste com crescimento demográfico terá sido mais curto do que o esperado. A evidência publicada não é surpresa para mim, sobretudo se tivermos em conta, por um lado, a política pública de redução da natalidade dos últimos tempos e, por outro, o próprio desenvolvimento socioeconómico da China. É essa não surpresa que gostaria de explicar melhor neste post.

 

É óbvio que a redução de 850.000 almas num colosso demográfico não é coisa que suceda todos os dias. Mas se interpretarmos bem a última década demográfica e económica da China perceberemos que se trata de uma crónica anunciada.

Recordemos, em primeiro lugar, que a política de COVID zero e a má qualidade da vacina chinesa colocaram em evidência algum mal-estar social que nem o poderoso autoritarismo do modelo chinês conseguiu disfarçar. Por mais entraves que a maior agressividade das relações EUA-China tenha colocado à abertura tecnológica da China ao mundo, o mundo da Internet, mesmo que rigorosa e implacavelmente vigiado pelas autoridades chinesas, não permite esconder o desconforto de muitos chineses relativamente ao controlo da sua vida pessoal e familiar.

Além disso, o PC chinês implantara nos últimos anos uma rigorosa política de controlo da natalidade, impondo o limite de 1 filho por casal. Tal decisão, no quadro de um modelo de coerção pessoal e individual muito forte deixa marcas duradouras nos comportamentos dos casais mais jovens, que não é fácil ultrapassar através da reversão dessas medidas. Entretanto, o crescimento económico chinês das últimas duas décadas, além de ter tirado da pobreza uma enorme massa de gente, foi criando uma classe média urbana com aspirações de ascensão no trabalho e na sociedade que exige medidas de proteção social que o modelo chinês nunca equacionou como fonte central das suas prioridades. Assim, não só a dura restrição da natalidade deixou marcas de inércia entre a população jovem, como o próprio desenvolvimento socioeconómico e a participação da mulher nesse processo geram inevitavelmente a descida da taxa de fertilidade. Para que a crescente participação da mulher na vida ativa não se traduza pela descida habitual nesse contexto da taxa de fertilidade, é necessária uma preocupação “ocidental” para com a conciliação da vida profissional e familiar e uma grande recetividade das empresas à socialização desse custo para as quais o modelo chinês está longe de estar preparado.  Por outro lado, no contexto de desenvolvimento recente da economia chinesa o custo de educar uma criança estará inevitavelmente a aumentar e as dúvidas sobre a capacidade do Estado se reconverter ao novo objetivo de contrariar o declínio demográfico serão obviamente maiores depois de uma política feroz e implacável de redução da natalidade. O aumento desse limite para 2 e depois para 3 filhos. As inúmeras reportagens que têm sido publicadas na imprensa internacional, como é disso exemplo a edição internacional do New York Times deste fim de semana, mostram uma enorme desconfiança por parte dos casais jovens urbanos para com esta mudança de agulha das autoridades chinesas, elas próprias também impressionadas reversão do ciclo demográfico em tempo mais rápido do que o esperado.

 


Ora, este dilema dos casais jovens é relevante e mostra que mesmo um regime autoritário e repressivo como o chinês enfrenta também a chamada transição demográfica. E as estimativas da repercussão da reversão do ciclo demográfico sobre a economia e o mercado de trabalho trazem igualmente números impressionantes que não podem deixar de impactar o próprio modelo económico chinês. Cerca de 5 a 10 milhões de pessoas abandonarão a vida ativa, não podendo deixar de impactar o mercado de trabalho e convidar a uma mudança do modelo de especialização, baseado anteriormente nas hordas de população rural que chegava às cidades para trabalhar na indústria transformadora. E no reverso da medalha, o envelhecimento tenderá a aumentar na sociedade chinesa, exigindo não só o apoio às mulheres para não reduzirem a fertilidade a zero mas também um esboço de estado social.

O que significa que, além dos outros constrangimentos a que o modelo chinês está hoje exposto, a questão demográfica e social junta-se à complexidade já conhecida. Suspeito que a tentação de engenharia social que passou pelas autoridades chinesas quando reprimiu a fertilidade terá agora um campo extremamente adverso e que será no campo político e não do autoritarismo social que o problema terá de ser abordado. O que, por si só, explica o interesse de continuar a seguir com atenção, a complexa transição do modelo chinês.

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