sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

DE NOVO A DEGENERESCÊNCIA DA BASE MORAL

 


(Em 1983, apresentei na Conferência do CISEP sobre economia portuguesa, no ISEG, um texto/comunicação intitulado “A degenerescência da base moral da economia portuguesa”. Penso que foi a primeira vez que alguém escreveu algo do género sobre a economia portuguesa, ainda os estudos sobre ética empresarial estavam pouco desenvolvidos. O contexto dessa minha reflexão era cristalino. Acabara de ler a Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, tinha ficado impressionado com esse outro lado da vulgata que corria em Portugal sobre a obra de Smith e o estado da economia portuguesa de então estava a pedi-las. Lembro-me de ter tido uma conversa preparatória da conferência com a saudosa Professora Manuela Silva, que ficara agradada com o texto. Infelizmente, ele não foi publicado em mais nenhuma revista e ficou registado nas atas da Conferência que o ISEG haveria de organizar num registo comum a outras conferências. Nestes últimos dias, cheguei à conclusão que a minha referência à degenerescência da base moral da economia portuguesa fora algo premonitória, justificando-se desenterrar o conceito e a abordagem para nos situarmos nos conturbados tempos que a coisa pública vive por estes dias no país.

 

Ao contrário do que a vulgata da mão invisível nos transmite, a dinâmica do capitalismo não vive apenas do cálculo económico individual sujeito ao princípio da maximização do interesse pessoal. A ciência económica mais ousada já abandonou há algum tempo o pressuposto da racionalidade e da informação perfeitas nesse cálculo económico individual, como se as decisões dos agentes económicos fossem tomadas em ambientes asséticos, totalmente puros e desprovidos de ruídos e imperfeições. Não é esse o tema do post e, por isso, deixo apenas essa reserva e pedido de atenção sobre outros modelos de racionalidade utilizados pelos agentes económicos, que estão muito longe dos princípios da otimização imaculada.

O que me interessa realçar é que, além desse princípio da maximização do interesse pessoal, o capitalismo fica dependente dos valores éticos e morais com que essa maximização do interesse pessoal é realizada. Na crise de 2007-2008, por exemplo, ficou claro que a “ganância” (greed) com que algumas decisões económicas foram tomadas precipitou a crise e a dimensão das suas consequências. Se isso é válido para as decisões do cálculo económico individual, é-o também para os comportamentos dos agentes, empregadores ou empregados, sejam eles exercidos em funções privadas ou em funções públicas. Neste último domínio, a questão é mais complexa pois há uma contraposição de interesses individuais, os do agente em causa, e de interesses públicos que decorrem da natureza de e do serviço público em que inscreve a sua atividade.

Nos últimos tempos, temos assistido a uma claríssima degradação da base moral e ética com que as funções públicas são exercidas. Devemos interrogar-nos se a degenerescência dessa base ética e moral é interpretável apenas do ponto de vista individual ou se, pelo contrário, teremos de invocar a influência de contextos políticos e sociais que acabam por não gerar deterministicamente essa degradação, mas influenciar a sua ocorrência e manifestação em atos muito concretos.

A minha interpretação aponta mais para o segundo modelo. De facto, formou-se nos últimos tempos todo um contexto de transumância política, de afunilamento perverso da ação política e das carreiras que prosseguem os seus agentes e de desvalorização do interesse público que acolhem favoravelmente a degenerescência dos comportamentos individuais. E, se estiverem atentos, irão reparar que a grande maioria dos infratores se declara de consciência tranquila quanto às decisões tomadas, como aconteceu agora com os casos mais badalados, por acaso três mulheres, Alexandra Reis, Clara Alves e Rita Marques. Esta tranquilidade de consciência é o indicador mais ilustrativo da degenerescência da base ética e moral. Os personagens chegaram a um plano em que os seus próprios juízos de valoração das suas decisões e da sua própria consciência ignoram totalmente os princípios éticos e morais do seu comportamento. É o estado supremo da degenerescência.

A questão é tão evidente que me dispenso de desenvolver a questão da perversidade deste estado de coisas para a democracia e para a valoração pública da ação política e dos seus intérpretes. Sabemos que as elites estão sob o fogo cruzado do populismo mais agressivo. Quando o comportamento dessas elites se degrada a este ponto, dispenso-me de muito elaborar sobre o que isso significa para a crise da democracia.

Nota final:

Reparo agora que em 15 de novembro de 2018 redigi um post sobre o tema, intitulado “ETHICS IS BULLSHIT” OU O ESVANECIMENTO DA VERGONHA” (da qual retirei o cartoon que abre esta crónica), que mostra que o tema não é minha preocupação só de agora (link aqui). Uma prova mais de que o contexto ajuda.

 

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