O romancista alemão Günter Grass, Premio Nobel da Literatura em 1999, tornou-se uma personalidade especialmente controversa. Sobretudo desde que, em 2006, aproveitou a publicação da sua obra autobiográfica “Descascando a Cebola” para revelar – demasiado tardiamente, segundo alguns – a sua ligação, em 1944, a uma unidade de elite do regime nazi. Um tema complexo, como já aqui aflorei a outro propósito (post de 29 de Janeiro, p.e.).
Pois Grass, hoje com 84 anos e acima caricaturado por Rainer Hachfeld em http://www.neues-deutschland.de, voltou à carga publicando com chamada de primeira pagina “Ein Aufschrei” (“Um Grito”) no diário “Süddeutsche Zeitung” (Munique) – e, conjuntamente também, nos “The New York Times”, “La Repubblica” e “El País”. O “grito” é uma espécie de poema intitulado “O que tem de ser dito” (“Was Gesagt Werden Muss”) e em perpassa a ideia de que Israel é um país muito mais perigoso para a paz no mundo do que o Irão. E, talvez ainda mais significativamente, referindo que a possibilidade de Israel lançar um ataque contra o Irão contando com o beneplácito alemão (entrega de submarinos) – uma Alemanha que até agora se mostrara ultra-cautelosa quanto ao conflito do Médio Oriente – poderá corresponder a uma forma de expiar o passado perversa porque susceptível de engendrar novas culpas.
As posições extremam-se de novo: “consciência moral” (da Alemanha e da esquerda intelectual), movido por “culpa e vergonha” ou “eterno antissemita”? Pessoalmente, não me sinto em condições suficientemente informadas para uma tomada consciente de partido mas, entendendo o tema como enormemente relevante em múltiplos planos, opto por transcrever uma tradução livre do dito poema (a partir da tradução espanhola de Miguel Sáenz). Diz assim:
Por que me calo há tanto tempo
sobre o que é evidente e se empregava
em jogos de guerra em que no fim, sobreviventes,
acabamos como notas de pé de página.
É o suposto direito a um ataque preventivo
que poderia exterminar o povo iraniano,
subjugado e levado a um júbilo orquestrado
por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
da fabricação de uma bomba atómica.
Mas por que me proíbo de dizer o nome
desse outro país em que
há anos – ainda que secretamente –
se dispõe de um crescente potencial nuclear
fora de controlo, já que
é inacessível a toda inspeção?
O silêncio generalizado sobre esse facto,
ao qual se submeteu o meu próprio silêncio,
soa-me como uma grave mentira
e uma coação que ameaça castigar
quando não respeitada;
"antissemitismo" é o nome da condenação.
Agora, no entanto, porque o meu país
foi atingido e chamado a capítulo uma e outra vez
por crimes muito próprios
incomparáveis
de forma rotineira,
mesmo que depois qualificada de reparação,
vai entregar a Israel outro submarino cuja especialidade
é dirigir ogivas aniquiladoras
para onde não se comprovou
a existência de uma única bomba,
embora se queira apresentar como prova o temor…
digo o que tem de ser dito.
Por que me calei até agora?
Porque achava que a minha origem,
marcada por um estigma indelével,
me proibia de atribuir esse facto, como é evidente,
ao país chamado Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.
Por que só agora digo,
envelhecido e com a minha última tinta:
Israel, potência nuclear, põe em perigo
uma paz mundial já por si mesma fragilizada?
Porque é preciso dizer
o que amanhã poderia ser tarde demais,
e porque – suficientemente incriminados
por sermos alemães –
poderíamos ser cúmplices de um crime
que é previsível, pelo qual a nossa parte de culpa
não poderia ser extinta
com as desculpas habituais.
Admito-o: não continuo calado
porque estou farto
da hipocrisia do Ocidente; cabe esperar ainda
que muitos se libertem do silêncio, exijam
ao causador desse perigo visível que renuncie
ao uso da força e insistam também
em que os governos de ambos os países permitam
o controlo permanente e sem entraves
por uma instância internacional
do potencial nuclear israelita
e das instalações nucleares iranianas.
Só assim poderemos ajudar a todos, israelitas e palestinos,
e sobretudo a todos os seres humanos que nessa região
tomada pela demência
vivem como inimigos lado a lado,
odiando-se mutuamente,
e, em definitivo, ajudar-nos também.
Independentemente de tudo, apelos deste tipo sempre relevam, mais não seja porque nada é nunca demais contra quaisquer riscos de novas réplicas dos piores e mais selvagens momentos que o século XX conheceu…
Pois Grass, hoje com 84 anos e acima caricaturado por Rainer Hachfeld em http://www.neues-deutschland.de, voltou à carga publicando com chamada de primeira pagina “Ein Aufschrei” (“Um Grito”) no diário “Süddeutsche Zeitung” (Munique) – e, conjuntamente também, nos “The New York Times”, “La Repubblica” e “El País”. O “grito” é uma espécie de poema intitulado “O que tem de ser dito” (“Was Gesagt Werden Muss”) e em perpassa a ideia de que Israel é um país muito mais perigoso para a paz no mundo do que o Irão. E, talvez ainda mais significativamente, referindo que a possibilidade de Israel lançar um ataque contra o Irão contando com o beneplácito alemão (entrega de submarinos) – uma Alemanha que até agora se mostrara ultra-cautelosa quanto ao conflito do Médio Oriente – poderá corresponder a uma forma de expiar o passado perversa porque susceptível de engendrar novas culpas.
As posições extremam-se de novo: “consciência moral” (da Alemanha e da esquerda intelectual), movido por “culpa e vergonha” ou “eterno antissemita”? Pessoalmente, não me sinto em condições suficientemente informadas para uma tomada consciente de partido mas, entendendo o tema como enormemente relevante em múltiplos planos, opto por transcrever uma tradução livre do dito poema (a partir da tradução espanhola de Miguel Sáenz). Diz assim:
Por que me calo há tanto tempo
sobre o que é evidente e se empregava
em jogos de guerra em que no fim, sobreviventes,
acabamos como notas de pé de página.
É o suposto direito a um ataque preventivo
que poderia exterminar o povo iraniano,
subjugado e levado a um júbilo orquestrado
por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
da fabricação de uma bomba atómica.
Mas por que me proíbo de dizer o nome
desse outro país em que
há anos – ainda que secretamente –
se dispõe de um crescente potencial nuclear
fora de controlo, já que
é inacessível a toda inspeção?
O silêncio generalizado sobre esse facto,
ao qual se submeteu o meu próprio silêncio,
soa-me como uma grave mentira
e uma coação que ameaça castigar
quando não respeitada;
"antissemitismo" é o nome da condenação.
Agora, no entanto, porque o meu país
foi atingido e chamado a capítulo uma e outra vez
por crimes muito próprios
incomparáveis
de forma rotineira,
mesmo que depois qualificada de reparação,
vai entregar a Israel outro submarino cuja especialidade
é dirigir ogivas aniquiladoras
para onde não se comprovou
a existência de uma única bomba,
embora se queira apresentar como prova o temor…
digo o que tem de ser dito.
Por que me calei até agora?
Porque achava que a minha origem,
marcada por um estigma indelével,
me proibia de atribuir esse facto, como é evidente,
ao país chamado Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.
Por que só agora digo,
envelhecido e com a minha última tinta:
Israel, potência nuclear, põe em perigo
uma paz mundial já por si mesma fragilizada?
Porque é preciso dizer
o que amanhã poderia ser tarde demais,
e porque – suficientemente incriminados
por sermos alemães –
poderíamos ser cúmplices de um crime
que é previsível, pelo qual a nossa parte de culpa
não poderia ser extinta
com as desculpas habituais.
Admito-o: não continuo calado
porque estou farto
da hipocrisia do Ocidente; cabe esperar ainda
que muitos se libertem do silêncio, exijam
ao causador desse perigo visível que renuncie
ao uso da força e insistam também
em que os governos de ambos os países permitam
o controlo permanente e sem entraves
por uma instância internacional
do potencial nuclear israelita
e das instalações nucleares iranianas.
Só assim poderemos ajudar a todos, israelitas e palestinos,
e sobretudo a todos os seres humanos que nessa região
tomada pela demência
vivem como inimigos lado a lado,
odiando-se mutuamente,
e, em definitivo, ajudar-nos também.
Independentemente de tudo, apelos deste tipo sempre relevam, mais não seja porque nada é nunca demais contra quaisquer riscos de novas réplicas dos piores e mais selvagens momentos que o século XX conheceu…
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