segunda-feira, 30 de abril de 2012

REGRESSO



Descobri-o nos anos 80 e devorei os seus quatro livros por então publicados – “Cortes”, “Lusitânia”, “Cavaleiro Andante” e “O Conquistador”. Perdera-lhe entretanto o rasto, ao que parece muito por força das suas ausências editoriais. Numa das minhas recentes incursões pelas livrarias, saltou-me à vista a familiaridade do seu nome na capa de uma obra de viagens da excelente coleção dirigida por Carlos Vaz Marques na “Tinta da China”: Almeida Faria.

Não era, efetivamente, o novo romance que à primeira vista desejei fosse. Mas “O Murmúrio do Mundo – a Índia Revisitada” acabou por ser um reencontro feliz. Trata-se de uma espécie de diário de uma viagem à Índia (sobretudo Goa e Cochim) organizada pelo Centro Nacional de Cultura em 2006. E, como referiu Gustavo Rubim na Ípsilon, “não se fica com inveja do viajante, fica-se-lhe grato pela generosa magia de converter vários dias de viagem em menos de cento e cinquenta páginas de puro prazer para a imaginação e a inteligência”.

De entre o muito que este ensaio contém, destaco memórias da expansão portuguesa e restos do império, manifestações de conquista e indícios de fratura, bocados da Índia colonizada e sinais da sua emergência. Mas, sobretudo, a espessura de um intelectual e a riqueza do ensaísta assim afirmado. Como ele próprio explica: “À medida que avançava tacteando, ia descobrindo o efeito de surpresa causado pelo confronto ou o encontro do meu texto com o texto de outros autores, antigos e modernos, portugueses e estrangeiros”.

Breves passagens, quase ocasionais:
·         “Uma pessoa distraída ou que tivesse dormido mal e não soubesse onde estava, diante da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, muito branca no cimo da alta e branca escadaria, à primeira vista pensaria estar em Portugal. Mas, reparando melhor, veria que o púlpito exterior de cantaria azul rendilhada como filigrana tem um toque oriental. E, se houvesse missa, tanto poderia calhar ouvi-la em inglês como em concani ou português.”
·         “Os pretensos prodígios europeus não tornaram o planeta mais feliz, e deixaram por todo o lado uma herança de dois gumes, de benesse e pesadelo. Há anos, na Hungria, perguntei ao escritor Péter Esterházy se herdara ao menos algum pequeno palácio dos príncipes seus antepassados. Não herdei palácios, herdei ‘nomes’ de palácios, respondeu com uma gargalhada. Algo de semelhante aconteceu com a herança portuguesa em Cochim e Kerala.”
·         “As latitudes quentes, húmidas, onde tudo floresce depressa e depressa apodrece, tornam mais visível o que há de fugaz nas nossas vidas. A irrealidade daquele quase-idílio convidava a não prosseguir viagem, a ficar na calma senhorial da tarde deixando escorrer as horas, contemplando o deslizar dos dias, dialogando com aqueles que por aqui passaram e cujas vidas podem apossar-se de nós a ponto de se recusarem a passar.”
·         “Desejei-lhe boa tarde, muitas tardes do seu tempo intemporal. Quando íamos separar-nos, achou que devia justificar a vida contemplativa que levava. Com voz enfraquecida, concluiu num francês arcaico, peculiar, talvez do tempo de Montaigne, que ele era ‘soy-mesmes la matière de sa vie’ (ele mesmo a matéria da vida dele). Desejando-me boa estada na ‘sua’ cidade, virou costas, umas costas dobradas, e desapareceu a passo lento sob o arco de um altar do lado esquerdo.”
·         “O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa a familiarilizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real.”

Seja bem-vindo, Almeida Faria – e para quando o romance há tanto tempo em falta?

Sem comentários:

Enviar um comentário