Tarde
diversificada de sábado, primeiro com a quase familiar inauguração da exposição
de jovens artistas De Olho da Rua na já aqui referenciada livraria de bairro Velhotes, em Vila Nova de Gaia e depois com o concerto de Marc-André Hamelin na Casa da
Música.
Aliás, só a
virtuosidade e sensibilidade de Hamelin me poderiam ter tirado de estar frente
ao televisor para ver mais um embate do confronto “intuição coletiva versus
estratégia preparada até à exaustão” que o Barcelona – Real Madrid
representava.
Estava com alguma
curiosidade para ver como é que o público da Casa da Música reagia ao facto de,
num concerto pautado por Haydn, Ravel e Brahms, surgir uma peça de Stockhausen,
mais propriamente o Klavierstuck IX. Na minha reduzida experiência nesta matéria,
recordo há talvez dois ou três anos um concerto sublime de Maurizio Pollini na Gulbenkian
em Lisboa, no qual o célebre pianista também inseriu num programa eminentemente
clássico e harmónico uma peça de música contemporânea, creio se a memória não
me atraiçoa também de Stockhausen. Ora, tive então oportunidade de confirmar
que, ao intervalo, entre o bastante emproado e mais velho público da
Gulbenkian, com algum cheiro a naftalina dos casacos compridos de algumas
velhas senhoras, reinava a desorientação e a incredulidade. Não tinham vindo
para ouvir aquele Pollini. O que me deixou pessoalmente bastante mais
sossegado quanto ao impacto que aquela dissonância também me tinha provocado.
Ora, o público da
Casa da Música pareceu-me bastante mais confortável com aquela estranha dissonância,
aliás numa peça que começa com um decrescendo de notável execução que deixa
qualquer um amarrado ao lugar. Não será estranho a este conforto o papel do Remix Ensemble e das sonoridades contemporâneas que por seu intermédio atravessam a Casa da Música.
Já antes a elegância
de Haydn combinada com a virtuosidade de Hamelin nos tinha preparado para um
sublime Gaspard de la Nuit de Ravel que sempre me habituei a ouvir pela
interpretação de Martha Argerich, no topo das minhas preferências e que entre
as maiores é praticamente a única que não consegui ainda ouvir ao vivo, sobretudo
agora que não toca sozinha, mas sempre em projetos coletivos como são os
encontros de Lugano com Arguerich e amigos. Com toda esta austeridade, não dará
nos próximos tempos para tentar uma escapada a Lugano e ver a diva ao vivo. A
partir da interpretação de ontem de Hammelin o meu coração balança.
Uma pujante Sonata
nº 3 de Brahms com toda a virtuosidade de Hamelin a emergir e um encore de cerca de 10 minutos do
Hamelin compositor (peça em torno de uma ideia de Paganini) fecharam mais um
daqueles encontros cruciais do Porto e da Casa da Música com o cosmopolitismo
musical de topo para fazer bem ao ego. Mas também para fazer esquecer uma
liderança política quadrada e totalmente incapaz de perceber o alternativo e a
mudança implícita no diferente (dispenso-me de comentar o caso da Escola da Fontinha,
pois a reação da imprensa é suficientemente consistente para perceber que o
Porto terá de ser nos próximos dois anos sempre e sempre contra-a-corrente e
apesar da sua liderança).
Nos tempos que se
avizinham, momentos como o de Marc-André Hamelin irão provavelmente escassear,
a não ser que a iniciativa privada se meta em brios e conserve o nível já
atingido. E pode ser que a diva do piano Arguerich nos visite. Imagino o que
seriam aqueles cabelos grisalhos no palco da Sala Suggia.
Já em casa e
perante o televisor, constatei que uma filosofia de jogo alicerçada na intuição
coletiva e do génio ao serviço dessa intuição (Barcelona) pode ser contrariada
por uma estratégia preparada até ao mais ínfimo pormenor (Mourinho, Real
Madrid), também com o génio da força (e não a força do génio) de Cristiano ao
serviço dessa estratégia obsessiva pelo pormenor das incidências do jogo. A relação
“70% - 30%” de posse de bola favorável ao Barcelona diz tudo acerca do que a
estratégia obsessiva pelos pormenores e incidências do jogo.
Poderia ainda
dizer-se que as lições de Mourinho nos deveriam massajar o ego português tão
amarfanhado nos últimos tempos. A capacidade de jogar com a pressão é notável.
Num contexto dessa natureza quem arriscaria de novo atribuir a um Fábio Coentrão
tão ostracizado em Madrid nos últimos tempos um papel tão relevante na estratégia
defensiva do Madrid?
E se os êxitos de
Mourinho não nos massajam o ego quanto seria de esperar, isso é porque todos
sentimos que globalmente não temos essa capacidade de risco e de liderança e
muito menos a tem quem nos tem orientado nos últimos tempos o futuro. É um de nós
que tem êxito, mas é um de nós bastante dissonante do que somos. Apreciamos os
seus resultados, mas estão demasiado longe de nós. Talvez uma geração ainda
emergente o possa assumir como verdadeiramente seu e assim também ganhar
capacidade de risco e liderança.
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