domingo, 22 de abril de 2012

MARC-ANDRÉ HAMELIN E NÃO SÓ …



Tarde diversificada de sábado, primeiro com a quase familiar inauguração da exposição de jovens artistas De Olho da Rua na já aqui referenciada livraria de bairro Velhotes, em Vila Nova de Gaia e depois com o concerto de Marc-André Hamelin na Casa da Música.
Aliás, só a virtuosidade e sensibilidade de Hamelin me poderiam ter tirado de estar frente ao televisor para ver mais um embate do confronto “intuição coletiva versus estratégia preparada até à exaustão” que o Barcelona – Real Madrid representava.
Estava com alguma curiosidade para ver como é que o público da Casa da Música reagia ao facto de, num concerto pautado por Haydn, Ravel e Brahms, surgir uma peça de Stockhausen, mais propriamente o Klavierstuck IX. Na minha reduzida experiência nesta matéria, recordo há talvez dois ou três anos um concerto sublime de Maurizio Pollini na Gulbenkian em Lisboa, no qual o célebre pianista também inseriu num programa eminentemente clássico e harmónico uma peça de música contemporânea, creio se a memória não me atraiçoa também de Stockhausen. Ora, tive então oportunidade de confirmar que, ao intervalo, entre o bastante emproado e mais velho público da Gulbenkian, com algum cheiro a naftalina dos casacos compridos de algumas velhas senhoras, reinava a desorientação e a incredulidade. Não tinham vindo para ouvir aquele Pollini. O que me deixou pessoalmente bastante mais sossegado quanto ao impacto que aquela dissonância também me tinha provocado.
Ora, o público da Casa da Música pareceu-me bastante mais confortável com aquela estranha dissonância, aliás numa peça que começa com um decrescendo de notável execução que deixa qualquer um amarrado ao lugar. Não será estranho a este conforto o papel do Remix Ensemble e das sonoridades contemporâneas que por seu intermédio atravessam a Casa da Música.
Já antes a elegância de Haydn combinada com a virtuosidade de Hamelin nos tinha preparado para um sublime Gaspard de la Nuit de Ravel que sempre me habituei a ouvir pela interpretação de Martha Argerich, no topo das minhas preferências e que entre as maiores é praticamente a única que não consegui ainda ouvir ao vivo, sobretudo agora que não toca sozinha, mas sempre em projetos coletivos como são os encontros de Lugano com Arguerich e amigos. Com toda esta austeridade, não dará nos próximos tempos para tentar uma escapada a Lugano e ver a diva ao vivo. A partir da interpretação de ontem de Hammelin o meu coração balança.
Uma pujante Sonata nº 3 de Brahms com toda a virtuosidade de Hamelin a emergir e um encore de cerca de 10 minutos do Hamelin compositor (peça em torno de uma ideia de Paganini) fecharam mais um daqueles encontros cruciais do Porto e da Casa da Música com o cosmopolitismo musical de topo para fazer bem ao ego. Mas também para fazer esquecer uma liderança política quadrada e totalmente incapaz de perceber o alternativo e a mudança implícita no diferente (dispenso-me de comentar o caso da Escola da Fontinha, pois a reação da imprensa é suficientemente consistente para perceber que o Porto terá de ser nos próximos dois anos sempre e sempre contra-a-corrente e apesar da sua liderança).
Nos tempos que se avizinham, momentos como o de Marc-André Hamelin irão provavelmente escassear, a não ser que a iniciativa privada se meta em brios e conserve o nível já atingido. E pode ser que a diva do piano Arguerich nos visite. Imagino o que seriam aqueles cabelos grisalhos no palco da Sala Suggia.
Já em casa e perante o televisor, constatei que uma filosofia de jogo alicerçada na intuição coletiva e do génio ao serviço dessa intuição (Barcelona) pode ser contrariada por uma estratégia preparada até ao mais ínfimo pormenor (Mourinho, Real Madrid), também com o génio da força (e não a força do génio) de Cristiano ao serviço dessa estratégia obsessiva pelo pormenor das incidências do jogo. A relação “70% - 30%” de posse de bola favorável ao Barcelona diz tudo acerca do que a estratégia obsessiva pelos pormenores e incidências do jogo.
Poderia ainda dizer-se que as lições de Mourinho nos deveriam massajar o ego português tão amarfanhado nos últimos tempos. A capacidade de jogar com a pressão é notável. Num contexto dessa natureza quem arriscaria de novo atribuir a um Fábio Coentrão tão ostracizado em Madrid nos últimos tempos um papel tão relevante na estratégia defensiva do Madrid?
E se os êxitos de Mourinho não nos massajam o ego quanto seria de esperar, isso é porque todos sentimos que globalmente não temos essa capacidade de risco e de liderança e muito menos a tem quem nos tem orientado nos últimos tempos o futuro. É um de nós que tem êxito, mas é um de nós bastante dissonante do que somos. Apreciamos os seus resultados, mas estão demasiado longe de nós. Talvez uma geração ainda emergente o possa assumir como verdadeiramente seu e assim também ganhar capacidade de risco e liderança.

Sem comentários:

Enviar um comentário