quarta-feira, 25 de abril de 2012

INVICTA E LONDRES

Há dias no JN, Jorge Fiel referia que “há milhares de questões fraturantes que dividem colegas, amigos e familiares, proporcionando discussões intermináveis”. Por exemplo, e livremente: Paris ou Londres? Braga ou Guimarães? Antas ou Foz? Saramago ou Lobo Antunes? Siza ou Souto de Moura? Sgt. Pepper’s ou White Album? Pelé ou Maradona? Ronaldo ou Messi? FCP de Artur Jorge ou FCP de Mourinho?

Apelo a esta inspiração para recordar uma polarização que vivi na adolescência e que também fez o seu percurso com a intensidade que marcava um país paralisado: Londres ou Invicta? Falo de barbearias, do Porto do fim dos anos 60 e de locais de encontro e convivência interclassista. Falo de algo que poucos terão retratado melhor do que o Carlos Tê no seu romance O Voo Melancólico do Melro”.

Como em: “O meu pai assomou à porta a dar corda ao relógio. Fazia sempre isso antes dos grandes acontecimentos da vida: dava corda a todos os relógios da casa como se alimentasse canários. Depois verficava com escrúpulo o estado dos fusíveis.”

Ou em: “O rádio pia o ‘Tombe la neige’. Não sei porquê, mas esta canção do Adamo faz-me pensar na noite em que falámos de pais com horizontes no olhar. A noite em que Augusto me confessou o primeiro abalo da sua fé, quando o Porto jogou com o Newcastle para a Taça das Cidades com Feira e ele se pôs atrás da porta do quarto a pedir a Deus o golo do empate, que dava passagem à eliminatória seguinte, mas Deus não o ouviu e o Porto foi eliminado.”

Ou, também, em: “Chegou o televisor. A Ann Margrett beijou um homem dentro duma banheira cheia de espuma e a minha mãe desatou a rir como se estivesse a ver o pamplinas. O meu pai falava sozinho engendrando um plano para esconder o aparelho quando aparecessem os fiscais. Tinham-lhe dito que a taxa de televisão ia direitinha para os gastos com a guerra do ultramar e ele decidira amotinar-se não pagando. Conjecturava em voz alta: Batem à porta, espreita-se pelo olho de peixe, se for estranho, leva-se o televisor para o guarda-fatos e põe-se a fontinha luminosa no lugar dele não vá o fiscal desconfiar do móvel vazio.”

Ou, ainda, em: “Um dia cheguei ao salão de bilhares com a novidade do Grupo de Jovens Católicos, cuja função era reflectir sobre os problemas da juventude e do resto do mundo. Mas essa novidade trazia outra: o grupo era misto.”

E por aí adiante…


Volto ao meu assunto. A Barbearia Londres, na Rua de Cedofeita 250-A, vinha de 1931 e afirmara-se, a dada altura, como o primeiro grande “cabeleireiro de homens” da Cidade. Dela guardo três impressões fortes: a mudança de estatuto com que o meu pai me distinguiu quando decidiu levar-me pela primeira vez a esse espaço de vaidade e convívio masculino; aquele corredor ocupado pela azáfama de uma dúzia de “artistas” debruçados sobre clientes que ocupavam as respetivas cadeiras e beneficiavam de serviços e conversas personalizados; a atitude afável e profissional do gerente Alexandre Pinheiro (também fundador em conjunto com seu irmão Armindo), organizador de toda a logística e um personagem que se impunha pelo aparato da sua calvice integral.

Nos anos 60, a Londres atingiu o auge, com o revolucionário aparecimento do famoso corte "hardy". E foi em 1968 que a concorrência rompeu o “condicionamento industrial” reinante e se fez sentir, com a Barbearia Invicta a abrir portas a umas centenas de metros, à Praça de Carlos Alberto, sob o impulso de uma “cisão na Londres” e pela mão de quatro homens (José Aventino da Silva, José Mendes de Babo, Aníbal do Carmo Soares e Joaquim Pereira Júnior).

Acompanhei obviamente o meu pai na opção que então fez pela Invicta, sob a influência do barbeiro que melhor lhe conhecia os hábitos e os gostos. E por lá tenho vindo a passar, com maiores ou menores intervalos temporais e muito em função das convicções e contestações capilares dos anos 70 ou de ausências pontuais nas décadas seguintes. Com as falas a abrirem-se e o futebol, sempre dominante, a privar com outros temas (incluindo a política), e com a mais recente novidade de umas meninas que lavam as cabeças e arranjam as unhas.




O meu pai desapareceu. A Londres fechou há dez anos. Mas a Invicta ficou e tornou-se um símbolo portuense. E José Aventino da Silva esteve sempre lá. A autarquia decidiu atribuir-lhe, por ocasião do 25 de Abril, a sua medalha de mérito – fez bem, independentemente de eu não saber avaliar se com o devido grau (porquê cobre?). Sem dúvida que o meu pai também teria ficado contente...

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