(Não é para falar das diferentes bazucas europeias (que péssima terminologia) que este post é elaborado, mas antes para trazer aqui o interessante debate que o programa de estímulos económicos da nova administração Biden está a suscitar. De novo transparece a maior riqueza do debate americano quando comparado com o incipiente debate europeu, que nos traz ideias pertinentes para entender o triste estado de letargia e encerramento entre pares a que o debate na academia europeia chegou.)
O plano anti pandemia que a administração Biden se propõe lançar monta a 1,9 milhões de milhões de dólares que se junta assim ao programa de estímulos que, ainda com a administração Trump, o Congresso americano aprovou em dezembro de 2020. Não estamos a falar de coisa pouca. Mesmo que entendido como choque positivo temporário e, como todo o choque temporário, tenderá a ver os seus efeitos diluídos ao longo do tempo, não sendo obviamente indiferente o tipo de despesas de investimento que tal programa irá assumir. São boas notícias que mostram à evidência que os tempos da política fiscal regressaram, tendo os economistas de bom senso compreendido que a política monetária, por mais mãos largas que o Banco central possa apresentar-se, não é suficiente. O chamado “policy-mix” regressa em força e são tempos interessantes para perceber como é que a autonomia dos bancos centrais na política monetária vai articular-se com a autonomia política da política fiscal.
Programas de estímulo económico desta envergadura não podem deixar, compreensivelmente, de agitar o debate económico. Uma boa parte dos possíveis intervenientes neste debate regozija-se com o regresso da política fiscal, afinal ela não estava morta, e apetece dizer que não havia necessidade de ter de suportar uma pandemia tão devastadora para chegar a essa conclusão. Estou nesse grupo de opinião e entendimento. Keynes no além deve também regozijar-se e os mais afetados pela crise social que a devastação sanitária provoca por todo o lado agradecem esta prova de lucidez para tentar colocar de novo a economia nos eixos do crescimento económico.
Quanto à dimensão dos estímulos existem várias formas possíveis de o medir, seja pelo que eles representam em termos de produto, seja ainda pelo que significam em termos de reparação do rendimento dos mais afetados. Mas alerto para o facto do confronto com outras situações em que os governos se chegaram à frente ser difícil. É que convém não ignorar que o impacto da pandemia gera uma crise global à escala mundial e não como outras situações do passado em que havia pelo menos um bloco económico a funcionar como motor de compensação. Todos esperamos que a China o possa ser em 2021, mas por agora a crise é global. Daí não me espantar que a dimensão do estímulo americano possa parecer estratosférica.
O debate americano é muito rico e agora que o tempo está desanuviado com a retirada de Trump, pelo menos até às suas novas investidas que arriscam partir não sei se ao meio, mas partir de qualquer modo o Partido Republicano, há condições para que as ideias de novo se confrontem.
Este debate tem pergaminhos e evidência passada relativamente recente. De facto, na administração Obama abriu-se um intenso e vivo debate quando o chamado programa de estímulo económico Obama ficou consideravelmente aquém do que era esperado e que chegou inclusivamente a estar programado. A questão impactou bastante os economistas americanos mais liberais (no sentido social que os americanos lhe dão) e de orientação mais intervencionista. Ficou a ideia dominante de que Obama terá perdido uma das grandes oportunidades do seu mandato para marcar a diferença na abordagem à Grande Recessão de 2008. E ficou sobretudo no ar a dúvida sobre as razões que determinaram esse recuo aparente. Terá sido por questões de abordagem económica (mais falcões do que pombas a influenciar a decisão na antecâmara da sua preparação, ou seja mais ortodoxia do que heterodoxia) ou terá sido apenas uma avaliação de tática política, conhecendo Obama bem as condições políticas que teria para aprovar o programa no Congresso?
Ora, foi com surpresa generalizada de todos onde também me incluo que o primeiro artigo com peso que lançou para o debate reservas sobre a dimensão do estímulo e não sobre a sua razoabilidade tenha sido Lawrence Summers (link aqui). A surpresa justifica-se mas tem uma pitada de interesse circunstancial. Primeiro, o economista de Harvard é o pai do conceito de estagnação secular (ver posts anteriores sobre a matéria neste espaço que foi dos primeiros senão o primeiro em Portugal a trazê-lo para o debate entre muros, por exemplo aqui), cuja abordagem coloca o investimento público num lugar de realce. Segundo, Lawrence Summers passa por ser um dos principais responsáveis pelo recuo no estímulo Obama, sendo muito conhecido o seu texto em que procura fundamentar a sua crítica.
Ou seja, as reservas de Summers publicadas no Washington Post não seriam apenas contraditórias com a sua abordagem da estagnação secular, como parecem significar uma recaída da sua parte sobre as reservas à bondade dos programas de estímulos económicos. Summers seria assim uma espécie esquisita de pomba-falcão. Muito progressista contra a ortodoxia, mas non troppo.
A surpresa com a posição de Summers aumenta quando se percebe que as suas dúvidas, reservas ou alertas de riscos são fundamentalmente de dois tipos: riscos inflacionários de um estímulo tão poderoso e riscos de que o programa possa destruir antecipadamente necessidades de investimento público se for excessivamente focado na recuperação de rendimentos.
Summers esforça-se por demonstrar quão mais elevado é o
estímulo de Biden do que foi o de Obama (não só em termos de percentagem do
produto potencial americano, mas também da recuperação de rendimentos que pode
proporcionar), embora conceda, fazendo mea culpa cerca de 12 anos depois,
acho eu pela primeira vez, que o programa de Obama poderia ter sido mais
ambicioso. Mas os riscos que associa ao programa de Biden não me parecem
convincentes, sobretudo os riscos inflacionários. Por mais ousado que seja o
programa ele é temporário e não parece existir evidência de que em contexto de
baixas ou nulas taxas de juro a inflação ocorra vertiginosamente. Mais
interessante é a observação quanto ao aspeto crítico da composição do
investimento que possa ser associado ao programa de estímulos. A devastação
social que a pandemia está a provocar na sociedade americana impede que o
programa de estímulos possa limitar-se a um programa de investimentos de recuperação
económica com uma dimensão de resposta à emergência climática. Mas daí a pensar
que possa ser apenas um programa de recuperação de rendimentos vai uma grande
distância. O programa não parece por si só nas condições atuais inibir
endividamento adicional para fazer face a um faseamento de investimentos de
modernização infraestrutural da economia americana. O sempre perspicaz Noah
Smith tem razão a esse respeito (link aqui). O próprio Summers antecipou já algumas das críticas que a sua posição suscitou (link aqui).
Nota final, noutra dimensão:
Alguém sabe me dizer se António Costa e o Governo fizeram alguma coisa à Clara Ferreira Alves para justificar a sua súbita animosidade feroz contra o que ela supõe ser a morte do primeiro-Ministro? É que lúcida, racional e inteligente como é, tal animosidade de comentário não surge assim de repente. Se o posicionamento similar de Luís Pedro Nunes tem uma explicação, quem tanto analisa as redes sociais e a internet mais obscura acaba por ficar apanhado por elas, já o de Clara Ferreira Alves é estranho por ter sido de gestação tão súbita. Aceito explicações, sem que isso signifique considerar António Costa não merecedor de críticas severas quanto a alguns posicionamentos da sua parte e não apenas na gestão da pandemia. Por exemplo, apelar à consensualização da ciência não lembraria ao careca.
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