quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A HERANÇA DE OSBORNE

 


(Estou convicto de que a história do Reino Unido anotará daqui a uns bons anos a má influência da dupla Cameron-Osborne, primeiro-ministro e ministro das Finanças, na longa agonia para o BREXIT, na absurda austeridade com moeda própria e forte e, por estranho que o possa parecer, nas desigualdades dos efeitos provocados pela pandemia. Das modalidades de austeridade que ficam para a história económica analisar, entre a perfídia da que foi imposta ás economias do sul da Europa e a que foi brutalmente aplicada numa economia de moeda forte como o Reino Unido, venha o diabo e que escolha.)

            A dupla Cameron-Osborne parecia inseparável, mas curiosamente após o seu abandono da cena política, foi cada um para seu lado e com trajetórias bastante diferentes. Aparentemente, o primeiro remeteu-se a uma certa discrição e ausência de intervenção política, que só as suas memórias FOR THE RECORD de setembro de 2019 interromperam. Podemos com alguma probabilidade esperar que, após a pandemia, Cameron e a mulher regressarão aos mercados de peixe do Algarve onde eram vistos frequentemente em período de férias na maior das tranquilidades. A incomodidade com o processo de BREXIT para o qual colocou a passadeira vermelha com o referendo talvez explique esta ausência discreta da cena política. Osborne seguiu um caminho distinto. Ocupou sucessivos postos dourados de liderança de companhias e projetos privados, nunca se privou de intervir na cena política e a amargurada Theresa May ainda teve de suportar as suas investidas a partir do London Evening Standard onde foi editor-chefe.

A dupla em causa, e vá lá saber-se quem foi o autor da ideia, foi objetivamente responsável pelo maior corte de serviços e orçamento públicos no Reino Unido desde a Segunda Guerra Mundial, ficando assim na história não pela sua capacidade política, mas por um desumano ajustamento público, totalmente desnecessário numa economia com autonomia monetária e com moeda forte. Em termos palpáveis, pouco palpáveis entenda-se, Osborne agarrou-se a uma praticamente inventada e cabalística ameaça de colapso da libra que não convenceu ninguém, a não ser os diretamente interessados nesse corte gigantesco do orçamento público, com porta aberta para a ocupação de terreno por parte dos serviços privados.

Nesta quarta temporada da THE CROWN em que Margaret Thatcher (a Gillian Anderson dos meus sonhos) aparece a protagonizar o seu próprio corte de despesa pública e de serviços públicos (curiosamente, e mal, não aparece na série o episódio do Local Tax). Mas a CROWN foca-se sobretudo na tradição austera de Margaret a partir da influência do seu pai, comerciante, que nunca dependeu de apoios do Estado, para contextualizar a vontade férrea de impor à sociedade britânica a resiliência da capacidade de iniciativa. A perversidade austeritária de Thatcher tem pelo menos um contexto de influência familiar. No fundo, ela odiava os privilégios de classe e percebemos como é genial a forma como a série filma (seguramente com exagero) a humilhação que o casal Thatcher recebe em Balmoral quando é recebido pela Rainha e família. Em alguns diálogos da primeira-ministra com membros conservadores do seu Gabinete percebe-se esse ódio figadal aos privilegiados da upper class.

A austeridade de Cameron-Osborne é, pelo contrário, uma perversidade desumana de classe, objetivamente desnecessária face à situação macroeconómica do país, trocando o sofrimento implacável dos mais fracos pela defesa à falsa e cabalística ameaça de um colapso da libra.

Ao abrigo do que poderíamos chamar a histerésis da austeridade, ou seja a permanência a longo prazo dos efeitos sociais da mesma, há quem defenda que a profunda desigualdade com que os efeitos do COVID-19 se abateram sobre os mais fracos e deserdados da sociedade britânica se podem ainda explicar pelos duradouros impactos sociais do referido maior corte de despesa e serviços públicos do pós-Segunda Guerra Mundial. Como o experimentaram os desalojados e vítimas das inundações que o território britânico tem sofrido nos últimos tempos, fruto de obras públicas adiadas ou com manutenção periclitante.

Curiosamente, Polly Toynbee, colunista incisiva do The GUARDIAN (link aqui) não hesita em falar do legado de Osborne (não referindo, pour cause, o de Cameron), na explicação das fragilidades que a sociedade britânica para resistir à devastação do COVID-19.

E, pelo trajeto profissional de Osborne após a sua saída de primeiro-Ministro, não deve ter o seu sono perturbado por essa associação. É nessa perspetiva que a perversidade austeritária de classe é, em meu entender, a mais desumana. A incapacidade política do Labour em trabalhar esta perversidade é, por sua vez, o maior indicador de total incompetência política ao mesmo nível da dimensão dos cortes de serviços públicos que colocarão Cameron e Osborne na história.

 

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