segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

NOS ARQUIVOS

 

(Na eterna dança de reordenar as estantes, dando vida mesmo que fugaz ou efémera a tantos livros arrumados nas filas de trás, que buscam alguns dias de regresso à notoriedade afetiva de quem os comprou, dei comigo a folhear algumas páginas de uma economista, Joan Robinson, que tanto marcou os meus primeiros tempos de vida universitária. Curiosamente, praticamente em simultâneo, um dos grandes batalhadores por uma economia que resista à tentação zombie de substituir a sofisticação formal pela realidade, Lars Syll, regressou também a Joan Robinson.)

            Com estes tempos de pandemia tenho praticamente esquecido um dos pilares que sustenta este blogue. Trata-se de contribuir ainda que modestamente para aqui divulgar e trabalhar alguns dos contributos mais relevantes para trazer de novo a economia política à tradição de abordar a realidade por mais complexa, errática ou irracional que ela se apresente e de resistir à tentadora sofisticação formal-matemática que exige pressupostos celestiais para poderem ser aplicados. Na prática, a realidade está mais perto do diabo do que do celestial e os comportamentos humanos dos agentes económicos são muitas vezes exuberantes, irracionais, adaptativos, mas nunca racionais como se a informação que possam mobilizar seja perfeita e imaculada.

Essa preocupação de não adaptar artificialmente a realidade à sofisticação formal não deve ser confundida com a inelutável certeza de que fazer ou elaborar uma teoria implica sempre alguma simplificação dessa mesma realidade. Mas há vários tipos de simplificação. Existe a simplificação que pode ser posteriormente confrontada com a realidade, sem perder valia ou consistência. E há as simplificações que distorcem a realidade. Esta última não é nem teoria nem ciência, por mais reputação académica entre pares (que pares?) que esse exercício de ir buscar à matemática o rigor reputacional proporcione aos que decidem seguir por essa via.

Nos meus tempos de iniciação universitária, depois de uma formação de âmbito teórico na licenciatura na velha Faculdade de Economia do Porto (no sótão do atual edifício da atual Reitoria da Universidade do Porto, que eu considero, por mais impopular que isso me torne, abaixo de cão para quem queria estudar economia e não preparar-se para a vida empresarial, queimei pestanas e noites a fio para recuperar o atraso provocado por tão rudimentar formação. Nessa pesada tarefa de recuperar tempo e falhas de formação, “privei” com obras de grande impacto nesse trajeto. A obra de Joan Robinson foi uma dessas ajudas. A força do tempo levou alguns desses volumes preciosos para a segunda fila das estantes. Há dias, nesse constante reordenar destas últimas, trouxe alguns desses volumes para o primeiro plano, folheando páginas anotadas, produto dessas noites enquanto iniciava a minha vida universitária nos tempos algo conturbados da transição democrático-revolucionária na Faculdade de Economia.

Curiosamente, uma das passagens que me surgiu dos tempos de outrora coincidia com um dos últimos posts de Lars P. Syll (link aqui), um incansável economista sueco que sigo regularmente e que se destaca já há longo tempo pela sua implacável batalha por uma economia política que não distorça a realidade em proveito próprio.

A passagem é esta e que provém das Further Contributions to Modern Economics que tenho em edição distinta da que Syll utiliza:

Infelizmente, a maior parte das controvérsias económicas resultam do confronto de dogmas. O estilo da argumentação é mais o da teologia do que o da ciência … Em economia, as novas ideias são tratadas, no estilo teológico, como de heresias se tratassem e o mais possível afastadas das escolas levando os estudantes ao hábito de repetir velhos dogmas, preservando assim a ortodoxia estabelecida de ser minada…

No plano da teoria académica, a importância da revolução keynesiana consistiu em mostrar que todos os dogmas mais comuns são formulados num mundo sem tempo e que não sobrevive à simples observação de que as decisões, na vida económica, são necessariamente tomadas à luz de expectativas incertas acerca das suas consequências futuras.

A teoria ortodoxa reagiu a este desafio, ao verdadeiro estilo teológico, inventando palavras fantasiosas nas quais a diferença entre o passado e o futuro não aparece e concebendo teoremas matemáticos intrincados sobre o modo como a economia funcionaria se todos tivessem a capacidade de prever corretamente como toda a gente vai comportar-se.”

A economia que sairá, devastada, da pandemia exige uma ciência económica que rompa de vez com o pressuposto de que nas decisões económicas não haja nem passado, nem futuro, ou seja que não haja tempo, espesso, irredutivelmente incerto. Pois o tempo que teremos na recuperação será algo de incómodo, com duração e espessura com que vamos ter de lidar para assegurar a coerência da decisão económica nunca esquecendo o tempo político que nos espera.

As obras de Joan Robinson não regressarão tão cedo às filas escondidas da estante.

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