(Malagón, http://elpais.com)
Apesar dos meus badalados conflitos de interesses – refiro-me aos reais, de natureza pessoal, e não aos alegados, de natureza burocrático-política –, considero-me insuspeito de parcialidade em relação à análise de matérias ligadas à chamada “construção europeia” (pelas quais navego criticamente, investigando e ensinando ou intervindo e praticando, há mais de quarenta anos) e à senhora que atualmente dirige os destinos da Comissão Europeia (pessoa que não conheço e relativamente à qual serei insuspeito por sobre ela ter mixed feelings estritamente pessoais que aqui não vêm ao caso explorar). Vem esta declaração a propósito do post de ontem do meu amigo António Figueiredo e da sua vinculação ao escrito da Teresa de Sousa – que também muito admiro pelo seu profissionalismo e seriedade, como já por várias vezes deixei claro neste espaço –, sobretudo na medida em que os entendo – à luz da informação que julgo possuir, aliás proveniente de fontes públicas e não privilegiadas – essencialmente desfocadas e injustas. Sendo que o que pretendo não é mais do que apenas trazer a lume a possibilidade de uma outra leitura, talvez mais objetiva e menos retumbante em sede de “delapidação de créditos acumulados”, sobre a atuação no domínio do ataque à pandemia da Comissão Europeia e dos seus comissários mais diretamente envolvidos (a própria Presidente, a comissária da pasta da Saúde, a grega Stella Kyriakides, e o comissário do Mercado Interno, o francês Thierry Breton). Os quatro cartunes que abrem este post pretendem ser elucidativos do modo como foi sendo interpretado ao longo da semana que passou o problema ligado ao anúncio de uma quebra nas entregas europeias das vacinas da AstraZeneca.
Do que me foi dado conhecer, e sem prejuízo do caráter óbvio das referências produzidas pelo meu colega de blogue no tocante a reais questões de agilidade e flexibilidade decorrentes do modelo de governação e decisão na União Europeia (o que é a vida nas atuais circunstâncias e só pode ir sendo combatido, com mera expectativa de eficácia pontual e concreta, através de posicionamentos negociais assentes em estratégia, inteligência e foco), Ursula von der Leyen (UvdL) e os seus mais próximos fizeram alguma história pelo modo voluntarista como decidiram envolver-se, com algum risco e muitos obstáculos pela frente, num domínio que não é consabidamente pacífico na ordem burocrática europeia e que releva bem mais da dimensão nacional do que da comunitária.
Ilustro-o com as seguintes seis ordens de considerações: (i) uma louvável decisão, tomada no início do Verão passado, tendente a promover uma aproximação junto das grandes farmacêuticas e entidades de investigação visando o financiamento de consórcios capazes de acelerarem o processo de validação e chegada ao mercado de vacinas suscetíveis de serem produzidas no espaço europeu (ou seja, a serem alvo de uma espécie muito dirigida de intervenção pública de capital de risco); (ii) subjacente a tal decisão, uma clara e razoavelmente inédita atitude de expressão comunitária (versus nacionalista), a compra em bloco sem a qual duvido que países como o nosso não fossem passar as passas do Algarve para obtenção e pagamento das vacinas necessárias à desejada imunização da população portuguesa; (iii) neste quadro, uma questão entretanto surgida e que não terá sido tanto a de uma imposição de rebaixamento de preços mas sim a de uma contratualização feita em devido tempo e já de si de contornos necessariamente favoráveis aos interesses “capitalistas” (aliás, as grandes farmacêuticas estão mais do que familiarizadas com estes processos e movem-se neles como peixes na água); (iv) ainda neste quadro, um possível “erro” de UvdL, que poderá então ter sido o de pontuar a sua postura por algum grau de inocência, mesmo que assente numa crença na transparência e boa fé daquelas entidades e, sobretudo, das que têm ao seu comando personagens influenciáveis por amizades políticas (e o “estouvado BoJo” não é um menino de coro!) ou de outras naturezas mais ou menos perversas; (v) um potencial agravamento deste “erro” por via de um outro tipo de crença, este o do respeito pelas decisões de gestão e operacionalização que pertencem ao foro interno das empresas, reconduzido afinal a uma apriorística aceitação do funcionamento das sociedades assentes na autonomia da iniciativa privada e nas regras do mercado; (vi) uma credibilidade das autoridades científicas britânicas que nunca percebi ter sido posta em causa.
Dito isto, não negaria que UvdL teve uma “desastrada semana” e que dela saiu bastante fragilizada. Mas assim não aconteceu pelo tanto que foi dito e redito por parte de múltiplos dedos estendidos, antes somente pelas suas culpas próprias em tentações intrometedoras no conflito aberto com a AstraZeneca, pela precipitação do seu gabinete e da sua comunicação público-política e pela disparatada associação que procurou fazer deste processo em relação ao dossiê, tão dificilmente acabado de encerrar, do Brexit. UvdL pôs-se assim a jeito e, ao fazê-lo, potenciou um alarido internacional que claramente evidencia (se preciso fora...) a força da influência e capacidade de convencimento que estão ao serviço dos grandes atores empresariais. A centralizadora UvdL aprendeu com esta má experiência que lhe valeu dissabores, acusações e reprimendas que tanto dispensaria? Disso não faço a mais pequena ideia, mas sempre insisto na afirmação de que a UvdL é devida uma palavra de apreço sinalizadora do meritório e titânico esforço a que se prestou – com algum sucesso, diga-se – em prol de uma Europa unida e mais solidária. E é o que se me apraz...
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