sábado, 20 de fevereiro de 2021

ETHOS

 

                                        (Meryem - Öykü Karayel

(Esta série da NETFLIX tem-me batido forte. O confronto entre a cultura urbana turca, com a bela Istambul como pano de fundo, e as tradições muçulmanas e islâmicas, com a desigualdade e a psiquiatria e a psicoterapia a pairarem sobre a repressão das emoções que esse confronto suscita, oferece-nos um documento notável, revelador de quanto desconhecemos, como ocidentais arrogantes e pretensos senhores do mundo, este tipo de problemas.)

Já sublinhei por repetidas vezes que a NETFLIX foi uma descoberta dos tempos difíceis do confinamento para gerir a espuma dos dias, mais especificamente das noites e ver seletivamente televisão, mandando as agendas mediáticas às malvas.

A pesquisa na oferta NETFLIX não é lá muito amigável e nem sempre é fácil descobrir preciosidades entre filmes e séries. Ainda este fim de semana a Revista do Expresso anuncia um conjunto de filmes suecos pré Bergman que entusiasmam qualquer cineasta e que estão reservados para uma próxima pesquisa.

Já não me lembro de como fui parar à visualização da ETHOS que tenho visualizado com comedimento como se fosse um repasto que vale a pena saborear com tempo, adiando o mais possível o período que medeia até ao fim ou ao início de uma nova temporada. Mas estou rendido à qualidade desta digressão pela interação entre duas culturas na Istambul de todas as encruzilhadas e influências.

 

                                                    (Peri - Tülin Özen)

Há uma história central, que liga duas personagens dos dois lados do confronto cultural: a de Meryem (a espantosa Öykü Karayel), jovem pertencente a uma família tradicional dos arredores rurais de Istanbul, símbolo do conservadorismo religioso crescente na sociedade turca, que respeita as orientações do Hodja, ansião que assegura a orientação religiosa, e que presta serviço como mulher a dias num apartamento urbano e moderno de Istanbul; e a da Dra. Peri (psiquiatra, interpretada pela magnífica de contenção Tülin Özen), pertencente a uma família abastada, com casa para uma paisagem deslumbrante do Bósforo. A relação entre Meryem (a paciente, que vai em busca de uma explicação para a frequência de desmaios de que é alvo) e a psiquiatra é perturbadora para ambas. Meryem vai percebendo o que é a repressão das emoções e os seus efeitos e Peri vai sendo perturbada pela pureza singela daquela personalidade e pela perceção do desconhecimento e preconceitos que tem sobre o outro lado da cultura turca.

Começamos a perceber que a trama vai desvendar inúmeros processos e mecanismos através dos quais os dois mundos e as personagens que os protagonizam vão intercruzar-se e seguramente chocarem. Peri, psiquiatra, tem sessões regulares com uma outra psicoterapeuta (Gülbin interpretada pela bela Tülin Özen) que provém de uma família de religiosidade conservadora com quem rompeu e mantém um conflito violento com a irmã mais extremista a propósito do tratamento a dar ao irmão paraplégico. Yasin, irmão de Meryem, ex-militar, relaciona-se com o mundo urbano através de um emprego de segurança numa discoteca urbana da moda e lida com os problemas traumáticos de sua mulher Ruhiye, causado por uma gravidez antes do casamento numa aldeia pobre e profunda. Ali Sadi (o Hodja) tem na filha adotiva Hayrünnisa que estuda Economia em Konya, capital espiritual da Turquia, o encontro com a juventude turca que busca outros referentes. Sinan, dono do apartamento em que Meryem trabalha, também em fuga do meio mais conservador, vive um período de desencontro consigo e refugia-se em relações episódicas com a psicoterapeuta Gülbin e com a artista Melisa, de uma fotonovela conhecida e popular, que conhece Peri a psiquiatra.

O rigor formal da imagem é notável, o ritmo da narrativa envolve-nos até à medula e sobretudo o epicentro de tudo na relação entre Meryem e a psiquiatra e o que ela pode representar de alteração de um status quo cultural e conservador transportam-nos para uma matéria que sempre me apaixonou nos estudos do desenvolvimento, a interação entre culturas e o que significa a mudança sociocultural em contextos desta natureza de que a Turquia representa hoje um laboratório imenso.

Estou cada vez mais convicto de que o ocidente continua a alimentar uma enorme incapacidade de compreender o que representa a mudança nestes mundos e contextos, o que vai acabar por nos ser fatal, mas já não estarei cá para o viver. Ainda arriscaria uma viagem a Istambul como símbolo próximo de realidades mais distantes que não compreendemos de todo.

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