domingo, 14 de fevereiro de 2021

VIETNAME

 

                                                                    (The Lancet)

(Não estão ainda devidamente estudadas as condições de disseminação pandémica no continente asiático, que parecem atribuir-lhe alguma particularidade. Mas, à míngua de tais aprofundamentos que só serão possíveis quando a tempestade amainar, fica-nos para já o surpreendente caso do Vietname. Já não é a primeira vez que a particularidade da sociedade vietnamita vem ao de cima. Cada vez mais me convenço que se trata de um contexto dificilmente replicável.)

            À data de hoje, o Vietname com cerca de 98 milhões de pessoas, apresentava uma das mais baixas taxas de incidência de COVID-19 (23 casos por milhão de pessoas) e de mortes (0,4 mortes por milhão de habitantes), valores que contrastam com os valores de Portugal, respetivamente 1505 e 0,4. Posso até admitir reservas ou dúvidas cabalísticas relativamente, por exemplo, ao registo do número de mortes, mas controlando por essas eventuais insuficiências, o desempenho do Vietname é notável.

Entretanto, em artigo fresquinho publicado na THE LANCET (link aqui), tomo conhecimento através do Twitter de Eric Topol (link aqui) que, para cada cem pessoas inquiridas sobre o que acontecerá quando houver disponibilidade efetiva de vacinas, só duas apenas referem que não serão vacinadas, ou seja 98% confia plenamente que o serão. O Vietname encabeça a lista dos países que revelam confiança no processo de vacinação. Por exemplo, em França 56% refere que não são vacinadas e essa percentagem na Alemanha é de 35%. A Índia, a China e a Dinamarca são os países que mais se aproximam da confiança vietnamita, com percentagens respetivamente de 9,9 e 13.

Há de facto um conjunto de particularidades que o Vietname revelou desde o início da pandemia. Um dos aspetos mais marcantes foi o da assunção do combate à pandemia como uma missão nacional, envolve desde cedo restrições duras, uso generalizado de máscaras e produção imediata de testes para aplicação generalizada. Depois, o país tem uma tradição desde o início dos anos 80 de processos de vacinação contra doenças infeciosas e gratuito que funciona como teste de mobilização de uma grande percentagem de população. Não sabemos se a população asiática por ter sido alvo de disseminação de uma grande variedade de coronavírus disporá de alguma imunidade específica ou se se trata apenas de organização social, como no caso do Vietname. Largamente influenciada pelo tipo de organização que tiveram de conceber durante a guerra com os Americanos. A resposta social ao combate e aos confinamentos que eram realizados em função da evidência de surtos é de facto notável, como o testemunham imensos estrangeiros residentes. Veja-se este vídeo (“A prevenção é melhor do que a cura”) que ilustra a capacidade de resposta vietnamita bem cedo preparada e aplicada (link aqui).

          Se tivermos em conta que o Vietname não é uma ilha e a sua proximidade e interação com a China são inequívocas, seria necessária uma gigantesca farsa de ocultação de dados para explicar o aparente êxito da abordagem vietnamita.

          A questão parece-me estar mais na mais que provável impossibilidade de ignorar o contexto da sociedade vietnamita, sobretudo depois de ter conseguido suportar a guerra com os EUA e atendendo ao sentido de coletivo que essa privação bem-sucedida terá permitido construir.

          Aliás, também na parte económica, o regime vietnamita conseguiu atravessar praticamente incólume, e reforçando até o seu peso na exportação de produtos manufaturados, o longo período de liberalização do comércio internacional organizado pelo chamado Consenso de Washington (anos 80 e parte dos anos 90). E atravessou praticamente incólume esse período simplesmente contrariando esse Consenso imposto pelo neoliberalismo, não abdicando de intervir seletivamente na política comercial externa. Dani Rodrik foi dos primeiros economistas a salientar que os países não praticantes do Consenso foram os que tiveram melhor desempenho económico e o Vietname está nesse grupo.

          Não há comparações internacionais legítimas sem integrar os contextos subjacentes aos desempenhos que consideramos boas práticas. Por isso, o contexto vietnamita não é necessariamente transferível pura e simplesmente. Mas pode ser fonte de inspiração, revendo as boas práticas assumidas noutros contextos. É para isso que as comparações internacionais servem.

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