sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

NO PÓ DAS ESTANTES

 

(Fim de pequenas obras de conservação em Seixas. Tempo para recolocar objetos no sítio que ajudaram a moldar, repor as atmosferas do nosso conforto, suprimir o pó do incómodo de ver perturbadas as nossas rotinas e sobretudo devolver os livros ao seu habitat natural. Mas também a oportunidade de rever um texto delicioso de um dos grandes intelectuais do princípio do século, Walter Benjamim, judeu alemão, que se suicidou em 1940 barrado pelos espanhóis de Franco na sua fuga para a liberdade através de Portugal.)

Tenho vindo progressivamente a tomar contacto com uma das personalidades chave da primeira metade do século XX, nascido nos fins do século XIX e tragicamente interrompido na barragem em Espanha pelas autoridades de Franco, após uma penosa e desesperada passagem por Paris em condições de quase miséria económica.

O texto de que me recordava e que surgiu na sequência do trabalho de devolver às estantes livros aparentemente protegidos do pó, mas nele mergulhados, é uma versão inglesa de uma edição em alemão de vários escritos de Walter Benjamin, com o interesse e valia de ter um longo prefácio biográfico de Hannah Arendt, intitulada ILLUMINATIONS.

O texto chama-se “Desempacotando a minha biblioteca – uma conversa sobre colecionar livros”. Faz parte de um conjunto de textos-ensaios sobre diferentes variantes do nosso quotidiano, escritos com uma finura de análise e de olhar atento que transformam a realidade em algo de mais interessante do que resulta do nosso contacto quotidiano.

Vou limitar-me a um ou dois excertos, bastantes para intuirmos o alcance do texto:

Estou a desempacotar a minha biblioteca. Sim, estou. Os livros não estão ainda nas estantes, ainda não tocados pelo suave tédio da ordem. Não posso subir e descer pelas suas prateleiras para os rever antes de uma audiência amigável. Não precisam de recear nada disso. Em vez disso, vou pedir-vos que se juntem a mim na desordem de caixotes que foram abertos, com o ar saturado do pó da madeira, o chão coberto por papel rasgado, para se encontrarem comigo entre pilhas de volumes que estão a ver a luz do dia depois de dois anos de escuridão, de modo a que possam estar preparados para partilhar comigo um pouco do humor – não certamente um humor elegíaco mas pelo contrário um humor de antecipação -que estes livros suscitam num colecionador genuíno. (…)

Na vida de um colecionador existe uma tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem. Naturalmente, esta existência está também ligada a muitas outras coisas: a uma muito misteriosa relação com a propriedade, uma coisa sobre a qual teremos mais tarde mais alguma coisa que dizer; também ligada a uma relação com os objetos que não enfatiza o seu valor funcional e utilitário – ou seja a sua utilidade – mas que os estuda e ama como uma cena, o palco ou o seu destino. O encanto mais profundo para o colecionador consiste em encerrar cada um dos artigos num círculo mágico, no qual se fixam como a emoção final, a emoção da aquisição que paira sobre eles. Tudo recordado e pensado, tudo consciente, transforma-se no pedestal, o quadro, a base, o fecho da sua propriedade. O período, a região, o artesão, o proprietário anterior – para um verdadeiro colecionador todo o fundo subjacente de uma peça junta-se a uma enciclopédia mágica cuja quintessência é o destino do objeto. Nesta área circunscrita, pode então presumir-se como os grandes fisionomistas – e os colecionadores são os fisionomistas do mundo dos objetos – transformam-se em intérpretes do destino. Temos apenas de observar um colecionador manejar os objetos na sua caixa de vidro. Enquanto os segura nas suas mãos, ele parece que vê através deles o seu passado distante como se estivesse inspirado. O mesmo se diga para o lado mágico do colecionador – a sua imagem de muita idade, posso assim chamar-lhe”.

Não sei se a minha relação com os livros é a de um colecionador. Para lá da beleza deste texto, inspira-me sobretudo a metáfora da tensão dialética entre a ordem e a desordem que o crescimento e a organização permanente de uma estante significam. Claro que nos tempos de Walter Benjamim o livro não estava ainda massificado e por isso se fala no texto de artesãos. Mas é um texto de que sempre me recordo quando recomponho o espaço disponível nas prateleiras, com uma outra tensão, a da distribuição por diferentes sítios.

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