quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

AS INSONDÁVEIS CONSEQUÊNCIAS DO ON LINE


 

(Começam a surgir as primeiras evidências de investigação sobre contextos de trabalho, ensino ou aprendizagem, à distância, sabe-se lá se com ritmos e diversidade também eles próprios determinados pelas diferentes modalidades de confinamento e restrição à mobilidade em que o mundo vive por agora. Hoje vou concentrar-me no ensino ou aprendizagem, consoante o lado em que nos coloquemos, de quem ensina ou de quem aprende.)

Penso que não cometo erro grosseiro quando concluo que o tom geral e dominante que predomina por aí é o de uma grande animosidade e insatisfação quanto às condições de teletrabalho e do ensino à distância. Esse tom de animosidade dominante alimenta-se de uma grande diversidade de fatores complementares e de enquadramento, que tornam muito difícil, senão mesmo impossível, a tarefa de isolar a nossa apreciação seja de trabalhar à distância, seja de ter aulas não presenciais em função das características intrínsecas dessas tarefas. Ora, o meu ponto consistiria precisamente em considerar, por exemplo na educação e formação, a apreciação quanto a essas condições específicas, diria mesmo tecnológicas. Mas há vários fatores a perturbar esse isolamento. São as condições de conforto de cada um, a qualidade do local de trabalho reservado na nossa casa para as atividades on line, a qualidade dos nossos equipamentos e de redes de comunicação, a organização familiar, ser mulher ou homem, pais e mães de filhos pequenos ou em idade adolescente, com filhos ou sem filhos, harmonia caseira, a organização das nossas empresas ou escolas para quem trabalhamos ou onde aprendemos, as características psicológicas e de sociabilidade de cada um, enfim um mundo de variáveis a determinar a nossa apreciação.

Fico às vezes envergonhado com a minha boa disposição em reuniões Zoom, Teams, Cisco ou que plataforma for, quando me confronto com algumas faces carregadas e sombrias que o écran alargado do meu monitor complementar do portátil me permite visualizar. Qualquer generalização a partir da minha posição é abusiva e até injusta para outras situações. Tenho excelentes condições de trabalho em casa, gostaria de estar rodeado por netos a incomodar o meu trabalho mas o confinamento impede tal coisa, sou um tipo a fugir para o bicho do buraco que aguenta largos períodos sem necessidade de conviver, a harmonia em casa é perfeita, detesto perder tempo nas deslocações para o trabalho (suspendi, adiei ou suprimi, veremos, o nó de Francos) e falta de coisas e pretextos para descansar do trabalho não é problema que me apoquente. No trabalho à distância sou, assim, um outlier convicto e longe de mim qualquer pretensão de impor aos outros o que tem em mim explicação.

Mas tenho estado atento ao que se vai conhecendo de resultados de investigação sobre esta matéria, não propriamente apenas do ponto de vista dos inquéritos de opinião, mas especialmente do ponto de vista da explicação de algumas perceções mais ou menos coletivas que se vão formando.

O ensino à distância tem suscitado imensa investigação em período pandémico. A generalizada perceção das desvantagens do ensino à distância deve-se essencialmente à tese dominante de que ele exacerba desigualdades, impedindo que a Escola mitigue tais desigualdades com acompanhamento presencial que muitas das famílias dos jovens alunos não conseguem proporcionar. Não é esse tema que hoje me interessa. Interessa-me sobretudo analisar efeitos e avaliações do ensino não presencial, controlando pelos efeitos de exacerbamento de desigualdades que sabemos que existem e que podem gerar trajetórias de exclusão muito salientes.

Por acaso de bloguer acidental que procura inspiração para si próprio dei com um artigo muito sugestivo de Betsy Barre emanado de um Center for the Advancement of Teaching (inovação pedagógica e de processos de aprendizagem) de uma tal WAKE FOREST UNIVERSITY em Winston-Salem na Carolina do Norte, de que muito sinceramente nunca tinha ouvido falar, mas que as imagens do respetivo campus nos transportam para aquele tipo de campi que só as Universidades americanas conseguem assegurar.

                                                (Wake Forest University) 

O tema de investigação é simultaneamente sensível e apelativo. O problema a estudar é a perceção generalizada entre professores e alunos, sobretudo nestes últimos, de que o ensino à distância trouxe consigo uma perceção de carga de trabalho (workload) incomparável com o que era pressentido em semestres anteriores aos confinamentos pandémicos.

A investigação parte de uma caterva de testemunhos de estudantes da WAKE FOREST UNIVERSITY, completada por testemunhos recolhidos entre os próprios docentes. O modo como a maior carga de trabalho associada aos trabalhos à distância é referenciada é impressionante e assume tonalidades muito diversas. A investigadora lança para as conclusões seis hipóteses explicativas, sugerindo que não conseguiu identificar o contributo explicativo de cada uma e por isso aponta para uma combinatória destes fatores.

A primeira explicação é a possivelmente involuntária prática dos professores  estarem de facto a sobrecarregar os alunos com mais trabalho, desconfiando do seu empenho em casa e contornando esse receio com mais trabalho. Os autores sugerem que a preparação do início das aulas após setembro terá inundado os professores de novas ideias para novos métodos e trabalhos. Ou seja, alunos como cobaias de experimentação.

A segunda explicação remete para problemas organizacionais e de comunicação de expectativas por parte das Escolas, todos a quererem o melhor e gerando com isso uma sobrecarga de trabalhos a realizar on line não apenas pedagógicos.

A terceira hipótese explicativa aponta para sobrevalorização dos tempos e cargas de trabalho on line, simplesmente porque os estudantes se sentem mais infelizes sem o face to face presencial. Sabemos como tendemos a exagerar na estimação do tempo associado às tarefas de que gostamos menos. E os alunos são pessoas como nós sujeitos à mesma distorção de perceções.

A quarta hipótese é curiosa e é talvez a que mais me seduziu. Quando os alunos confrontam o seu trabalho em sala ou on line podem concluir que precisavam de menos horas para conseguir os mesmos resultados. Não participar numa tarefa on line é paradoxalmente mais difícil do que poder fazê-lo em classe, podendo neste último serem mais passivos. Curiosamente, uma das possíveis vantagens do ensino à distância pode estar paradoxalmente na base da animosidade da perceção quanto ao mesmo. O que é interessante é a conclusão a que se está a chegar de que o ensino on line despertou os professores para uma maior atenção, acompanhamento e escrutínio das condições de aprendizagem dos alunos.

A quinta hipótese integra as maiores exigências de adaptação ao ensino à distância que são colocadas aos estudantes, já mais rotinados no face to face. Existiria assim uma maior carga cognitiva para atingir os mesmos resultados de aprendizagem. E como esse período de adaptação é ainda relativamente curto, as perceções ressentir-se-iam.

E, finalmente, o cansaço pandémico afeta obviamente a capacidade de trabalho de todos e os estudantes não são exceção.

O artigo fornece na sua parte final pistas muito relevantes para se contrariar esta perceção, que a subsistir terá obviamente consequências nos resultados de aprendizagem, particularmente para os que duvidam das suas capacidades de manejamento do trabalho à distância.

O princípio de toda a boa prática pedagógica é ter a perceção mais rigorosa possível da carga de trabalho que implica um determinado exercício cognitivo. Ora, mesmo antes da pandemia, sempre achei que o nosso ensino secundário e universitário tende a confundir perigosamente carga de matéria letiva e capacidade de ganhar autonomia de aprendizagem. Não é por dar muita mais matéria que se promove a formação de capacidades de raciocínio, de resolução de problemas mobilizando recursos e ferramentas de conhecimento, de procura sistemática de informação, de pensamento crítico e pela própria cabeça. É sempre mais fácil dar mais matéria do que trabalhar aquelas capacidades. Não me admiraria que essa tendência se tivesse prolongado para o ensino à distância com a carga adicional das curiosidades das ferramentas tecnológicas para o ensino on line. Os gadgets são sempre sedutores e os professores são vulgares mortais.

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