(Tal como foi prometido, avanço com alguns desenvolvimentos para a fundamentação da minha intervenção no CCB, na Conferência sobre Mudança Climática e Novos Modelos Económicos. Esses desenvolvimentos pretendem enquadrar em que contexto emerge na Conferência a intervenção inaugural, o que se chama agora o Key Note Speech, da Professora Mariana Mazzucato.
Retirando os negacionistas, os ambientalmente agnósticos, os distraídos e ignorantes e o lobby dos combustíveis fósseis, um largo consenso sobre as ameaças e riscos enormes em que estamos mergulhados (literal e metaforicamente falando) devido ao agravamento das condições climáticas tem vindo a formar-se. O que é positivo e que permitiria, em princípio, augurar melhores condições de consenso sobre o que fazer. E já não funciona a máxima de Keynes segundo o qual no longo prazo estaremos todos mortos. É necessário intervir para salvar a pele a curto prazo e sobretudo assegurar um futuro mais sustentável às gerações futuras. Mas o progressivo consenso sobre os riscos e ameaças está longe de corresponder a um padrão similar em relação ao que fazer. Aí o desencontro é enorme.
É por aí que começa o meu comentário. Existe uma espécie de pensamento mágico ou quase mágico (a expressão é do economista sérvio Branko Milanovic tantas vezes invocado neste blogue) que associa o combate à emergência climática ao decrescimento (degrowth) ou ao crescimento zero. O primeiro tem alguma novidade, o segundo tem sido ao longo da segunda metade do século XX e duas primeiras décadas do século XXI recorrentemente recordado. Estas teses podem ter sido avivadas pelo surto pandémico que criou a ilusão de que o decrescimento e o não crescimento seriam a luz que nos está a mostrar o caminho para combater a emergência climática. Alinho com aqueles que pensam que essa abordagem é errada, embora a gestão e o após-pandemia possam ser a oportunidade certa para ir em busca de novos modelos de crescimento e também de negócio.
Nestas coisas, fala quem sabe e Branko Milanovic é um dos maiores em termos da interpretação da desigualdade à escala mundial. O economista sérvio relembra-nos duas coisas importantes, para um valor de 16 dólares à paridade dos poderes de compra do rendimento médio mundial em 2017 (link aqui e aqui). Primeiro, que apesar dos progressos registados, o mundo como um todo é ainda muito desigual: os 10% mais ricos absorvem 45-47% do rendimento mundial. Segundo, que a elasticidade do rendimento das emissões de gases com efeito de estufa é aproximadamente igual à unidade, o que significa que 10% de crescimento do rendimento provoca um crescimento de 10% das emissões. Dito por outras palavras, os 10% mais ricos do mundo respondem por 45-47% das emissões. E sabemos com alguma aproximação quem são estes 10% mais ricos a nível mundial: 450 milhões de pessoas no ocidente cerca de metade da sua população; 30-35 milhões de pessoas na Europa de Leste e na América Latina (10% da população); cerca de 160 milhões na Ásia (5% da população) e uma massa quase residual de pessoas em África.
Neste contexto, o decrescimento implicaria condenar à pobreza perpétua praticamente toda a população dos países mais pobres e impor a 80-90% da população ocidental uma redução dos seus rendimentos. Ou seja, o decrescimento ou é eticamente imoral ou impossível de atingir politicamente.
É óbvio que a desigualdade na distribuição mundial do rendimento contém virtualidades para o combate à emergência climática, seja por via do desincentivo ao consumo dos que respondem por 45 a 47% das emissões, seja por via fiscal. Não vou aqui desenvolver esta via de intervenção. Existe toda uma análise e política económica de que o maior expoente é a obra do Nobel William D. Nordhaus, que trabalha sobretudo conceitos como o de bem público com externalidades negativas para compreender a emergência e a mudança climática, muito na linha da abordagem das falhas de mercado. A determinação de um preço para o carbono (carbon pricing), o custo social do carbono, os clubes de clima, o free riding nas questões climáticas (países que se recusam a contratualizar compromissos e acordos de redução de emissões) são conceitos que Nordhaus trabalha em profundidade, com a ajuda preciosa do modelo DICE que ajudou a construir.
A abordagem da Mission Economy de Mariana Mazzucato vai por outra direção, seguindo a orientação de que a intervenção pública não tem que estar ligada e ser justificada apenas pela necessidade de superar as falhas de mercado. Como diz Mazzucato não se trata apenas de “fixing markets” (superando as falhas de mercado), mas antes de os criar com outros objetivos. Questiono-me no fim do comentário se a abordagem de Mazzucato pode ou não ser com vantagem combinada com a superação das falhas de mercado. Inclino-me a dizer que sim, mas exigia mais trabalho de reflexão e pesquisa.
Amanhã desenvolverei a abordagem da Mission Economy, como outra forma de abordagem à emergência climática, que parece estar a seduzir a Comissão Europeia no âmbito do Green Deal.
Por hoje, fica a perceção de que o degrowth e o crescimento zero são abordagens erradas, equivalentes a passes de mágica. E fica também a ideia de que a emergência climática tem de ser combatida com base em visões mais alargadas da sustentabilidade, que não apenas a sua dimensão ambiental. Hoje, parece cada vez mais evidente que resolver falhas de mercado ambientais sem a perspetiva da inclusão e da desigualdade existente gera desafios enormes.
Que o diga o Presidente Macron que bebeu o veneno de uma atamancada divulgação do seu imposto sobre o carbono.
Fica o desafio de situar criticamente a abordagem da Mission Economy à luz da situação concreta portuguesa. Não sei se estarei à altura, mas vou à luta.
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