(Em plena visita de Estado a Washington para apalpar o
pulso à troglodita e instável política externa de Trump, vale a pena regressar
às dificuldades da frente interna de Macron. Pode parecer paradoxal
mas são velhas questões que estão em jogo, apenas com a diferença de serem
discutidas noutros contextos.)
No início de
uma longa viagem de trabalho para Beja, longa e atribulada apenas pelo facto de
vivermos num país que colocou, talvez irreversivelmente, o transporte
ferroviário no caixote do lixo das preocupações políticas, dou comigo a ler o
Le Monde Diplomatique e a confrontar-me com o que uma certa esquerda pensa de
Macron:
“Desde fevereiro, o primeiro-ministro Édouard Philippe
tomou as primeiras decisões do governo relativas à função pública: planos de
saídas voluntárias, recrutamento acelerado de trabalhadores com contrato
individual, remunerações influenciadas por “critérios de mérito”, multiplicação
de indicadores individuais de resultado … Inaugurava assim uma cruzada contra
os estatutos: em primeiro lugar o dos ferroviários, depois todos os outros, particularmente
o da peça chave do estatuto dos funcionários, que diz respeito a cerca de 5
milhões e meio de assalariados, qualquer cisa como 20% da população ativa.
Neste domínio como nos outros, o presidente Emmanuel Macron quer andar de
pressa. Mandatado pelos que dominam- a finança internacional donde provém, (sublinhado meu) os círculos dirigentes da União Europeia, o patronato, a tecnocracia
administrativa, os servidores do show business, a quase totalidade dos media, o
jovem dirigente sabe que o tempo não trabalha para ele.” (Anicet
Le Pors, Le Monde Diplomatique, Avril 2018, p.1)
Este pequeno
excerto de um artigo de primeira página de uma publicação que resiste à
esquerda, apesar do trambolhão político dos últimos anos, hoje praticamente
limitada a um alucinado e inconstante Mélenchon que é pouco mais do que
retórica de comício (contundente, diga-se) é bem ilustrativo da controvérsia e
da resistência que envolve a intervenção do presidente francês dentro de
portas. O filme é conhecido há muito tempo. Temos assistido a um estranho
revisitar da película com novos realizadores e protagonistas, mas no fundo as
questões permanecem as mesmas e o impasse das respostas esse parece estrutural.
A França é um caso de estudo para compreendermos os limites da reforma
democrática do Estado e sobretudo a modernização do Estado Social. É um facto
que este não atingiu fórmulas tão avançadas como as observadas em algumas
dimensões na Alemanha e nos países escandinavos. Mas em algumas vertentes, como
por exemplo a discutidíssima semana das 35 horas, o modelo social francês é
provavelmente o mais avançado na Europa. O caso francês é também relevante por
dois outros motivos: primeiro, porque tem revelado uma extrema resistência às
incursões liberalizantes, como o provam os tempos de Sarkozy em que praticamente
os pilares dos principais direitos adquiridos ficaram intactos apesar da verborreia
do senhor Bruni; segundo, porque a França é também o caso típico de um modelo
social mal servido por um modelo económico, ou seja um caso em que o choque
entre os temas da competitividade e do modelo social e dos seus adquiridos é
mais contundente. Os modelos alemão e escandinavo não só têm revelado mudanças
que vão tornando os direitos adquiridos menos rígidos (caso das políticas
sociais sujeitas a demonstração de recursos), como o choque com a questão da
competitividade não é de longe tão gerador de danos. Como sabemos, os modelos
escandinavos são campeões do casamento entre inovação com desempenho
assinalável e proteção social.
A equação
competitividade – Estado e modelo social constitui o grande desafio dos nossos
tempos e da sua resolução depende a reforma progressista ou não da
globalização. Ou seja, dito por palavras inequívocas, pode a globalização ser
reformada com respeito pela equação competitividade- modelo social ou, pelo
contrário, a resolução desta última exige o nacionalismo económico como saída,
com todas as consequências que a história nos assinala?
Já tive
ilusões de que a social-democracia seria capaz de resolver a equação, através
de um programa cuidado de escolhas públicas, em que a educação, a saúde e a
flexi-segurança (à escandinava) no mercado de trabalho constituiriam
prioridades inalienáveis às quais a globalização teria de subordinar-se. Hoje
tenho menos ilusões. Não porque considere que as ideias estão obsoletas. Mas
porque estamos com deserto de protagonistas e lideranças, que assegurem aos
eleitores a confiança necessária para que os benefícios de amanhã, descontados
para o presente, superem as penosidades de hoje. Assim sendo, ou o caos ou por
via de personalidades como Macron, mesmo que provenientes da alta finança, ou
tendo com ela convivido (o sublinhado no excerto do Monde Diplomatique é
revelador do peso que tem este anátema para uma certa esquerda).
Não tenho a
certeza de que Macron não dê com os burros na água e caia como outros que no
passado tentaram resolver a equação. A novidade de hoje é a ponte que Macron
pretende estabelecer entre a frente interna francesa e a questão europeia. Ou
seja, um número de circo bem mais arriscado, trapézio do mais evoluído. O
problema é que não vejo mais nada a mexer.
Nota final:
Sem relação
com o tema deste post, não tenho receio em afirmar que manter, durante muito
mais tempo, a cidade de Beja e o Baixo Alentejo ligados à autoestrada do sul
por uma via tão estreita e ainda por cima em mau estado de conservação é uma prova
de desrespeito de todos os portugueses para os residentes de Beja, por via da inépcia
dos seus governos por eles eleitos.
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