segunda-feira, 23 de abril de 2018

A DIFÍCIL FRENTE INTERNA DE MACRON



(Em plena visita de Estado a Washington para apalpar o pulso à troglodita e instável política externa de Trump, vale a pena regressar às dificuldades da frente interna de Macron. Pode parecer paradoxal mas são velhas questões que estão em jogo, apenas com a diferença de serem discutidas noutros contextos.)

No início de uma longa viagem de trabalho para Beja, longa e atribulada apenas pelo facto de vivermos num país que colocou, talvez irreversivelmente, o transporte ferroviário no caixote do lixo das preocupações políticas, dou comigo a ler o Le Monde Diplomatique e a confrontar-me com o que uma certa esquerda pensa de Macron:

Desde fevereiro, o primeiro-ministro Édouard Philippe tomou as primeiras decisões do governo relativas à função pública: planos de saídas voluntárias, recrutamento acelerado de trabalhadores com contrato individual, remunerações influenciadas por “critérios de mérito”, multiplicação de indicadores individuais de resultado … Inaugurava assim uma cruzada contra os estatutos: em primeiro lugar o dos ferroviários, depois todos os outros, particularmente o da peça chave do estatuto dos funcionários, que diz respeito a cerca de 5 milhões e meio de assalariados, qualquer cisa como 20% da população ativa.
Neste domínio como nos outros, o presidente Emmanuel Macron quer andar de pressa. Mandatado pelos que dominam- a finança internacional donde provém, (sublinhado meu) os círculos dirigentes da União Europeia, o patronato, a tecnocracia administrativa, os servidores do show business, a quase totalidade dos media, o jovem dirigente sabe que o tempo não trabalha para ele.” (Anicet Le Pors, Le Monde Diplomatique, Avril 2018, p.1)

Este pequeno excerto de um artigo de primeira página de uma publicação que resiste à esquerda, apesar do trambolhão político dos últimos anos, hoje praticamente limitada a um alucinado e inconstante Mélenchon que é pouco mais do que retórica de comício (contundente, diga-se) é bem ilustrativo da controvérsia e da resistência que envolve a intervenção do presidente francês dentro de portas. O filme é conhecido há muito tempo. Temos assistido a um estranho revisitar da película com novos realizadores e protagonistas, mas no fundo as questões permanecem as mesmas e o impasse das respostas esse parece estrutural. A França é um caso de estudo para compreendermos os limites da reforma democrática do Estado e sobretudo a modernização do Estado Social. É um facto que este não atingiu fórmulas tão avançadas como as observadas em algumas dimensões na Alemanha e nos países escandinavos. Mas em algumas vertentes, como por exemplo a discutidíssima semana das 35 horas, o modelo social francês é provavelmente o mais avançado na Europa. O caso francês é também relevante por dois outros motivos: primeiro, porque tem revelado uma extrema resistência às incursões liberalizantes, como o provam os tempos de Sarkozy em que praticamente os pilares dos principais direitos adquiridos ficaram intactos apesar da verborreia do senhor Bruni; segundo, porque a França é também o caso típico de um modelo social mal servido por um modelo económico, ou seja um caso em que o choque entre os temas da competitividade e do modelo social e dos seus adquiridos é mais contundente. Os modelos alemão e escandinavo não só têm revelado mudanças que vão tornando os direitos adquiridos menos rígidos (caso das políticas sociais sujeitas a demonstração de recursos), como o choque com a questão da competitividade não é de longe tão gerador de danos. Como sabemos, os modelos escandinavos são campeões do casamento entre inovação com desempenho assinalável e proteção social.

A equação competitividade – Estado e modelo social constitui o grande desafio dos nossos tempos e da sua resolução depende a reforma progressista ou não da globalização. Ou seja, dito por palavras inequívocas, pode a globalização ser reformada com respeito pela equação competitividade- modelo social ou, pelo contrário, a resolução desta última exige o nacionalismo económico como saída, com todas as consequências que a história nos assinala?

Já tive ilusões de que a social-democracia seria capaz de resolver a equação, através de um programa cuidado de escolhas públicas, em que a educação, a saúde e a flexi-segurança (à escandinava) no mercado de trabalho constituiriam prioridades inalienáveis às quais a globalização teria de subordinar-se. Hoje tenho menos ilusões. Não porque considere que as ideias estão obsoletas. Mas porque estamos com deserto de protagonistas e lideranças, que assegurem aos eleitores a confiança necessária para que os benefícios de amanhã, descontados para o presente, superem as penosidades de hoje. Assim sendo, ou o caos ou por via de personalidades como Macron, mesmo que provenientes da alta finança, ou tendo com ela convivido (o sublinhado no excerto do Monde Diplomatique é revelador do peso que tem este anátema para uma certa esquerda).

Não tenho a certeza de que Macron não dê com os burros na água e caia como outros que no passado tentaram resolver a equação. A novidade de hoje é a ponte que Macron pretende estabelecer entre a frente interna francesa e a questão europeia. Ou seja, um número de circo bem mais arriscado, trapézio do mais evoluído. O problema é que não vejo mais nada a mexer.

Nota final:

Sem relação com o tema deste post, não tenho receio em afirmar que manter, durante muito mais tempo, a cidade de Beja e o Baixo Alentejo ligados à autoestrada do sul por uma via tão estreita e ainda por cima em mau estado de conservação é uma prova de desrespeito de todos os portugueses para os residentes de Beja, por via da inépcia dos seus governos por eles eleitos.

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