terça-feira, 24 de abril de 2018

HÁ LIMITES!



(A invocação do interesse coletivo por João Miguel Tavares para branquear a repelente divulgação dos interrogatórios a alguns dos arguidos no caso Marquês é bem ilustrativa da desagregação de valores que por aí grassa. Daí ao oportunismo de chicos-pretensamente espertos como JMT que não se cansa de explorar a sua glória de ter desconfiado de Sócrates e seus pares é um pequeno passo. Mas há limites e aqui não é uma visão etária do futuro que está em causa.)

Para começar uma manifestação de não conflito de interesses. Nunca integrei as hostes dos que se extasiavam com a capacidade de decisão de José Sócrates, como o pude confirmar em algumas sessões públicas, em que muitos dos atores da nossa praça faziam fila para fazer de emplastro junto do ex-primeiro Ministro, não se furtando a elogios à personagem. Sempre achei que o modelo económico tipo PT como empresa pretensamente global e as suas ligações com o também pretensamente global grupo BES-GES eram produto de megalomania em quem não se enxerga na verdadeira dimensão do país. Nunca tive dúvidas de que tal modelo iria gerar rendas a capturar pelo centralismo lisboeta e com mais convicção fiquei quando a SONAE foi derrotada na sua tentativa de OPA sobre a PT. Tive cedo a perceção da não solvabilidade de tal modelo económico e até o escrevi em avaliações oficiais, como o foi a avaliação do QCA III, em que talvez pela primeira vez (não é falsa modéstia) alguém falou da deterioração irrevogável da taxa real de câmbio que o modelo dos não transacionáveis estava a provocar em Portugal, determinando subidas ruinosas do preço relativo dos serviços e consequentemente a alocação do capital privado para negócios não geradores de melhoria da posição externa do país. Finalmente, não tenho dúvidas de que o envolvimento de Sócrates no caso Marquês tem ponta por onde se lhe pegue, embora continue a ter dúvidas sobre a eficácia probatória de alguns dos argumentos.

Com todo este contexto, será que o alegado envolvimento de José Sócrates me provocou surpresa ou interpretei-o como uma crónica anunciada? Claro que fiquei surpreendido, aliás como muito boa gente de boa-fé ficou, gente para quem a não identificação com uma dada personagem não significa necessariamente colocar-lhe uma etiqueta de corrupção na testa ou nas costas.

João Miguel Tavares, à procura de uma formação liberal e de origem católica moderna que não encontra, tem explorado até à exaustão a sua glória de pretensamente ter visto antes o que outros não viram e certamente os processos judiciais que Sócrates lhe moveu devem estar bem carregados no seu curriculum, tem o seu direito e não há incómodo por causa disso. À boleia de tal cartão-de-visita, JMT roça por vezes o estatuto de paladino da corrupção, uma espécie de justiceiro das ruas na luta dos bons contra os maus. Não escreve mal, é direto, contundente quase sempre, e enquanto permanecer nesse registo faz parte da boa pluralidade de opinião que a comunicação social deve acolher, haja ou não paciência para aturar os seus dislates do governo sombra ou similares.

Mas quando decide defender que a divulgação dos vídeos sobre os interrogatórios de alguns dos arguidos do caso Marquês (link aqui), obviamente Sócrates incluído, realizada pela SIC tem justificação numa lógica de sobreposição do interesse coletivo face ao interesse individual dos pressupostamente corruptos a coisa muda de figura. Apetece dizer há limites. Ou não será que o interesse coletivo deve ser promovido pelo funcionamento diligente, empenhado e honesto dos tribunais e de todo o sistema judicial, que deve preservar a defesa dos que revelam menor capacidade de acesso à informação? Fazer bom jornalismo de investigação, na base da procura da verdade e não ao serviço de outras agendas como algum jornalismo travestido de investigação, será algo de semelhante a divulgar vídeos de interrogatórios sem autorização por parte dos inferiorizados nesse diálogo? Será que a divulgação dos vídeos em causa resulta de uma decisão racional de proteção do interesse coletivo ou de uma situação de fraqueza em que o próprio desenvolvimento do processo se encontra? O estranho silêncio do Ministério Público sobre as condições em que tal divulgação ocorreu não será tão estranha da parte de quem tem o dever de prosseguir o interesse coletivo na investigação? Pode a comunicação social arvorar-se o direito de se substituir à justiça na defesa desse interesse coletivo?

A questão geracional que resulta do confronto da reação crítica de António Barreto (Diário de Notícias, link aqui) à referida divulgação (e não há aqui qualquer possibilidade de associarmos a Barreto o que JMT atribui aos condescendentes com a corrupção) com a atabalhoada defesa do interesse coletivo por parte de JMT é um ilustrativo sinal dos tempos. E aqui não há a questão dos que viveram ou não o 25 de abril. Aqui estamos tão só perante a consistência da nossa visão da democracia, essencial ou meramente circunstancial e instrumental. A facilidade (diria mesmo boçalidade) com que JMT fala do interesse coletivo anuncia tempos pouco risonhos para a defesa dos valores democráticos.

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