(A invocação do interesse coletivo por João Miguel Tavares
para branquear a repelente divulgação dos interrogatórios a alguns dos arguidos
no caso Marquês é bem ilustrativa da desagregação de valores que por aí grassa.
Daí ao oportunismo de chicos-pretensamente espertos como JMT que não
se cansa de explorar a sua glória de ter desconfiado de Sócrates e seus pares é
um pequeno passo. Mas há limites e aqui não é uma visão etária do futuro que
está em causa.)
Para começar
uma manifestação de não conflito de interesses. Nunca integrei as hostes dos
que se extasiavam com a capacidade de decisão de José Sócrates, como o pude
confirmar em algumas sessões públicas, em que muitos dos atores da nossa praça
faziam fila para fazer de emplastro junto do ex-primeiro Ministro, não se
furtando a elogios à personagem. Sempre achei que o modelo económico tipo PT
como empresa pretensamente global e as suas ligações com o também pretensamente
global grupo BES-GES eram produto de megalomania em quem não se enxerga na
verdadeira dimensão do país. Nunca tive dúvidas de que tal modelo iria gerar
rendas a capturar pelo centralismo lisboeta e com mais convicção fiquei quando
a SONAE foi derrotada na sua tentativa de OPA sobre a PT. Tive cedo a perceção
da não solvabilidade de tal modelo económico e até o escrevi em avaliações
oficiais, como o foi a avaliação do QCA III, em que talvez pela primeira vez
(não é falsa modéstia) alguém falou da deterioração irrevogável da taxa real de
câmbio que o modelo dos não transacionáveis estava a provocar em Portugal,
determinando subidas ruinosas do preço relativo dos serviços e consequentemente
a alocação do capital privado para negócios não geradores de melhoria da
posição externa do país. Finalmente, não tenho dúvidas de que o envolvimento de
Sócrates no caso Marquês tem ponta por onde se lhe pegue, embora continue a ter
dúvidas sobre a eficácia probatória de alguns dos argumentos.
Com todo
este contexto, será que o alegado envolvimento de José Sócrates me provocou
surpresa ou interpretei-o como uma crónica anunciada? Claro que fiquei
surpreendido, aliás como muito boa gente de boa-fé ficou, gente para quem a não
identificação com uma dada personagem não significa necessariamente colocar-lhe
uma etiqueta de corrupção na testa ou nas costas.
João Miguel
Tavares, à procura de uma formação liberal e de origem católica moderna que não
encontra, tem explorado até à exaustão a sua glória de pretensamente ter visto
antes o que outros não viram e certamente os processos judiciais que Sócrates
lhe moveu devem estar bem carregados no seu curriculum, tem o seu direito e não
há incómodo por causa disso. À boleia de tal cartão-de-visita, JMT roça por
vezes o estatuto de paladino da corrupção, uma espécie de justiceiro das ruas
na luta dos bons contra os maus. Não escreve mal, é direto, contundente quase
sempre, e enquanto permanecer nesse registo faz parte da boa pluralidade de
opinião que a comunicação social deve acolher, haja ou não paciência para
aturar os seus dislates do governo sombra ou similares.
Mas quando
decide defender que a divulgação dos vídeos sobre os interrogatórios de alguns
dos arguidos do caso Marquês (link aqui), obviamente Sócrates incluído, realizada pela SIC
tem justificação numa lógica de sobreposição do interesse coletivo face ao interesse
individual dos pressupostamente corruptos a coisa muda de figura. Apetece dizer
há limites. Ou não será que o interesse coletivo deve ser promovido pelo
funcionamento diligente, empenhado e honesto dos tribunais e de todo o sistema
judicial, que deve preservar a defesa dos que revelam menor capacidade de
acesso à informação? Fazer bom jornalismo de investigação, na base da procura
da verdade e não ao serviço de outras agendas como algum jornalismo travestido
de investigação, será algo de semelhante a divulgar vídeos de interrogatórios
sem autorização por parte dos inferiorizados nesse diálogo? Será que a
divulgação dos vídeos em causa resulta de uma decisão racional de proteção do
interesse coletivo ou de uma situação de fraqueza em que o próprio desenvolvimento
do processo se encontra? O estranho silêncio do Ministério Público sobre as
condições em que tal divulgação ocorreu não será tão estranha da parte de quem
tem o dever de prosseguir o interesse coletivo na investigação? Pode a
comunicação social arvorar-se o direito de se substituir à justiça na defesa
desse interesse coletivo?
A questão
geracional que resulta do confronto da reação crítica de António Barreto
(Diário de Notícias, link aqui) à referida divulgação (e não há aqui qualquer
possibilidade de associarmos a Barreto o que JMT atribui aos condescendentes
com a corrupção) com a atabalhoada defesa do interesse coletivo por parte de
JMT é um ilustrativo sinal dos tempos. E aqui não há a questão dos que viveram
ou não o 25 de abril. Aqui estamos tão só perante a consistência da nossa visão
da democracia, essencial ou meramente circunstancial e instrumental. A
facilidade (diria mesmo boçalidade) com que JMT fala do interesse coletivo
anuncia tempos pouco risonhos para a defesa dos valores democráticos.
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