quinta-feira, 26 de abril de 2018

DESCENTRALIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO



(Estas reflexões foram-me sugeridas por alguns minutos de conversa com o António Melo, numa manhã de feriado, numa esplanada de café de zona residencial, perto de minha casa. Fala-se de descentralização, dos medos da regionalização e da organização territorial do Estado e da falta de vontade política para dar um novo rumo a estas coisas, apesar de todos os truques comunicacionais.)

Já não via o António Melo há muito tempo. A conversa foi curta mas interessante. Afinal ele é convictamente um pesquisador nato da matéria da organização territorial do Estado e da sua evolução ao longo do tempo. Recordo ainda o seu excelente trabalho de pesquisa sobre a emergência das hoje designadas de Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, realizado no âmbito de um aniversário de criação da CCDRN, que penso não ter sido nunca publicado pela própria instituição, o que é uma pena acaso seja correta esta minha impressão.

Tenho sido nos últimos anos muito contundente sobre o modo como a descentralização, a regionalização e a reforma da organização territorial do Estado têm sido tratadas a nível político. Sou simultaneamente crítico do cada vez maior peso do centralismo político e da ânsia regionalista pacóvia e serôdia que grassa cá por cima, esta última praticamente limitada à barganha dos fundos (com arrebatadas e grandieloquentes tomadas de decisão que não resistem à mínima necessidade de concertação.

Do cada vez maior peso do centralismo político tenho falado vezes amiúde. Apesar do abalo que foi a completa destruição das ilusões da PT como empresa global e do BES-GES, baluartes económicos do centralismo lisboeta e, da exaustão do modelo de crescimento dos não transacionáveis, que dava pelo menos ao centralismo algum racional económico, o centralismo persiste. A dupla Pedro Marques (ministro do Planeamento e Infraestruturas) e Nelson de Souza (secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão com z e não com s) é das duplas com um maior pendor de centralização dos últimos anos), o que não deixa de ser um indicador. Mas a marca maior do centralismo é a cada vez maior dificuldade de coordenação entre ministérios, reveladora de uma lógica de centralização, de pendor setorial-vertical, que é uma forma de resistência centralista, eficaz, muito eficaz. E nem os Fundos Estruturais têm ajudado em sentido contrário. Por exemplo, a forma despudorada como os ministérios setoriais tendem a canibalizar os Programas Operacionais Regionais NUTS II, ocupando espaço na atribuição de fundos e compensando os seus parcos orçamentos setoriais para o exercício das respetivas políticas públicas é de bradar aos céus.

Da atomização regional tenho falado, menos frequentemente. Sou por vezes implicitamente acusado de fazer o jogo do centralismo, criticando a falta de consistência regional, mas militar em campanhas regionalistas exclusivamente limitadas à barganha dos fundos não é coisa que me atraia. Estou numa fase em que prezo muito a escolha das companhias e, por isso, alimentar com conhecimento sério guerras de alecrim e manjerona é coisa que não faz parte das minhas prioridades atuais. Não vejo de facto nenhum esforço sério de construção de uma identidade regional que tem de ser alcançada pela lógica da praxis e nunca pelo capital identitário inicial, que não existe, sejamos claros e rigorosos. O Norte é um ponto cardial e nada mais do ponto de vista territorial. Há vários Nortes e protagonistas para todos. Com tanto Norte, temos des(N)orte.

Estas duas realidades tendem a potenciar-se mutuamente. A atomização da identidade regional gera desconfiança no poder central. No fundo, cá por cima, vistos lá de baixo, somos todos uns índios, com hábitos esquisitos e cuja movimentação precisa de tradução junto do poder. Cada governo tem os seus tradutores de serviço e de confiança, que ganham por isso poder. Dispenso-me de os referir. Por sua vez, o alheamento e autismo centrais conduzem à concentração das energias regionais na barganha dos fundos. Levam ainda à perda de tomada de posição sobre as questões nacionais vistas na perspetiva da Região, ou seja acantonamento, coisa que rejeito em absoluto. Poderíamos pensar que esta inércia tenderia a reforçar o modelo “centralismo forte – municípios com capacidade de barganha superior à despesa pública que mobiliza e regiões de planeamento débeis”, sobre o qual tenho abundantemente escrito. O problema é que o estádio de desenvolvimento do país exige racionais de geração de investimento público e de políticas públicas que já não podem ser municipais, sob pena de grave destruição de recursos. Por isso estamos num impasse.

O governo PS de António Costa emergiu com um propósito de avançar definitivamente com o aprofundamento da descentralização. Pela minha parte, acho que a experiência autárquica de António Costa (não é indiferente ter sido em Lisboa e não noutro município ou cidade do país) contribuiu para a sua aparente convicção. Mas a conceção de organização territorial do Estado subjacente a esse pretenso entusiasmo descentralizador não é para mim totalmente legível. Compreendo que o momento político e estrutural do país não é propício a criar mais uma frente política de alguma querela político-institucional como aquela que a regionalização necessariamente abriria. Mas daí a aceitar por exemplo a ideia constitucionalmente controversa das eleições diretas para as presidências das áreas metropolitanas e, pior do que essa, a atribuição de legitimidade política às CCDR com as eleições dos Presidentes através de um colégio eleitoral de autarcas vai um grande passo.

A divulgação do recente acordo político com o PSD não aqueceu nem arrefeceu a minha interrogação sobre o assunto. Dessa divulgação nada de muito relevante transpareceu. Foi, por isso, com curiosidade, que li o artigo de Luís Ramos (link aqui) sobre estes temas, provocatoriamente designado de “descentralização sem regionalização?”. Luís Ramos, deputado e Professor na UTAD e representante influente no Conselho da Europa, é no PSD ativo de hoje talvez a personalidade com mais pensamento sobre a matéria, já que o Professor Valente de Oliveira tem mantido desde a segunda candidatura de Rui Moreira um grande distanciamento face ao partido. Curiosamente, LR cita-me a propósito de um estudo da Associação Comercial do Porto, já que a frase “não existe qualquer documento que sustente uma estratégia mais ampla de descentralização, nem é sequer claro que exista tal estratégia” foi escrita pelo JE. Com estas citações, corro o risco de que o atual Governo não morra de amores pela minha prosa.

Mas não é para esse efeito que o texto de LR me interessa. O texto seria relevante para clarificar se o acordo PS-PSD reflete de facto alguma negociação. Ora, pressupondo que LR está perto ou pelo menos sintonizado com a direção política atual do PSD (ou não estará?), a interrogação que o texto coloca ao referir que a “descentralização socialista parece confundir-se com um mero processo de ‘municipalização’ sugere que o impasse continua, mesmo após e apesar do acordo.

Sou dos que penso que um processo consequente em termos de coerência de atribuições e de transferência de recursos para os municípios pode constituir uma vantagem e gerar algum valor acrescentado num Estado tão centralizado. Há inúmeros domínios de política pública de proximidade aos cidadãos, por exemplo na área social e cultural, que podem perfeitamente ser “entregues” por via municipal, contribuindo por essa via para um novo estádio de capacitação de municípios. Mas essa conclusão não pode deixar de ser ponderada pela forte heterogeneidade dos municípios em Portugal, em termos de capacidade de “delivery” de políticas públicas. E, em estreita consonância com esta heterogeneidade, não podemos esquecer que o estádio de mudança estrutural do país exige uma nova lógica de formação de investimento público que não seja apenas central e municipal. Existe, temos de o reconhecer, o que tem sido difícil, um gap de organização territorial intermédia do Estado, que faça emergir novas lógicas e racionais de alocação de recursos. Sem regionalização, é difícil às CCDR cumprirem o duplo estatuto de agentes de concertação intermunicipal no quadro de uma NUTS II e de garante da coerência do Estado nas regiões. O primeiro por falta de legitimidade de representação e o segundo por manifesta falta de poder para vincular ministérios e serviços desconcentrados a uma lógica consistente de territorialização de políticas públicas. Estamos por isso perante um impasse.

Os impasses institucionais ultrapassam-se seja por via disruptiva ou por via incremental de inovação institucional. Posso dar por adquirido que não há energia e recursos políticos para uma via disruptiva. Posso estar enganado e estou aberto a que me apresentem argumentação alternativa. Provisoriamente, a pergunta que deve colocar-se é a de saber se a via incremental é possível. Face aos dois estatutos que as CCDR não conseguem responder simultaneamente, podemos perguntar qual deles tem margem de progresso, avaliada a partir das dinâmicas recentes?

No que respeita ao segundo estatuto, o de garante da coerência do Estado nas regiões não vislumbro nada de recente que me demonstre que há dinâmicas institucionais emergentes que me provem o contrário. O meu colega de blogue tem provavelmente uma visão diferente construída a partir de uma experiência de “mãos na matéria”, mais fundamentada que a minha mais distante da praxis. Mas o que eu vejo é o contrário, é por exemplo a canibalização nem sempre coerente dos programas regionais pelos ministérios setoriais, o que é a antítese de uma coerência?

E quanto ao primeiro estatuto? Aí, não propriamente nas CCDR, mas antes ao nível do relacionamento dos municípios com as instituições intermédias das CIM, vejo mudanças. Embora em termos difusos e diferenciados por regiões do país, em vinte anos mudou a perceção dos municípios quanto ao significado da cooperação intermunicipal. Não estou a ignorar que a praxis de algumas CIM corresponda em muitos casos a casamentos de conveniência, para no plano formal do intermunicipal melhor defender o investimento municipal. Mas estou em crer que, do ponto de vista da aprendizagem organizacional e salvaguardando as mudanças de ciclo de lideranças municipais, existe hoje uma perceção mais aberta da gestão de responsabilidades (e de serviços) partilhadas entre municípios e espaços de representação intermunicipal. Pode ser algo de embrionário e não sustentado, que exija uma política de seletividade e continuidade e sobretudo coerência de instrumentos de política pública a territorializar com as CIM. Mas aqui há alguma mudança. No outro estatuto, o da coerência do Estado nas regiões, não existe essa mudança. Logo, um potencial de intervenção, haja vontade política para tal e para proceder aos ajustamentos constitucionais necessários.

Toda esta reflexão pressupõe que se abandone definitivamente o limbo de saber se a regionalização é ou não para cumprir. Em meu entender, qualquer decisão, ou seja manter ou não o compromisso constitucional é clarificadora. O limbo em que estamos é que não o é. Sem essa clarificação, não haverá opção entre a via disruptiva e as vias incrementais possíveis. Quem é que perde? Seguramente, a racionalidade e a territorialização do investimento público e das políticas públicas em geral.

A bem do debate.

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