(Estas reflexões foram-me sugeridas por alguns minutos de
conversa com o António Melo, numa manhã de feriado, numa esplanada de café de
zona residencial, perto de minha casa. Fala-se de descentralização,
dos medos da regionalização e da organização territorial
do Estado e da falta de vontade política para dar um novo rumo a estas coisas,
apesar de todos os truques comunicacionais.)
Já não via o
António Melo há muito tempo. A conversa foi curta mas interessante. Afinal ele
é convictamente um pesquisador nato da matéria da organização territorial do
Estado e da sua evolução ao longo do tempo. Recordo ainda o seu excelente
trabalho de pesquisa sobre a emergência das hoje designadas de Comissões de
Coordenação e Desenvolvimento Regional, realizado no âmbito de um aniversário
de criação da CCDRN, que penso não ter sido nunca publicado pela própria
instituição, o que é uma pena acaso seja correta esta minha impressão.
Tenho sido
nos últimos anos muito contundente sobre o modo como a descentralização, a
regionalização e a reforma da organização territorial do Estado têm sido
tratadas a nível político. Sou simultaneamente crítico do cada vez maior peso
do centralismo político e da ânsia regionalista pacóvia e serôdia que grassa cá
por cima, esta última praticamente limitada à barganha dos fundos (com
arrebatadas e grandieloquentes tomadas de decisão que não resistem à mínima
necessidade de concertação.
Do cada vez
maior peso do centralismo político tenho falado vezes amiúde. Apesar do abalo
que foi a completa destruição das ilusões da PT como empresa global e do
BES-GES, baluartes económicos do centralismo lisboeta e, da exaustão do modelo
de crescimento dos não transacionáveis, que dava pelo menos ao centralismo
algum racional económico, o centralismo persiste. A dupla Pedro Marques
(ministro do Planeamento e Infraestruturas) e Nelson de Souza (secretário de
Estado do Desenvolvimento e Coesão com z e não com s) é das duplas com um maior
pendor de centralização dos últimos anos), o que não deixa de ser um indicador.
Mas a marca maior do centralismo é a cada vez maior dificuldade de coordenação
entre ministérios, reveladora de uma lógica de centralização, de pendor
setorial-vertical, que é uma forma de resistência centralista, eficaz, muito
eficaz. E nem os Fundos Estruturais têm ajudado em sentido contrário. Por
exemplo, a forma despudorada como os ministérios setoriais tendem a canibalizar
os Programas Operacionais Regionais NUTS II, ocupando espaço na atribuição de
fundos e compensando os seus parcos orçamentos setoriais para o exercício das
respetivas políticas públicas é de bradar aos céus.
Da
atomização regional tenho falado, menos frequentemente. Sou por vezes
implicitamente acusado de fazer o jogo do centralismo, criticando a falta de
consistência regional, mas militar em campanhas regionalistas exclusivamente
limitadas à barganha dos fundos não é coisa que me atraia. Estou numa fase em que
prezo muito a escolha das companhias e, por isso, alimentar com conhecimento
sério guerras de alecrim e manjerona é coisa que não faz parte das minhas
prioridades atuais. Não vejo de facto nenhum esforço sério de construção de uma
identidade regional que tem de ser alcançada pela lógica da praxis e nunca pelo
capital identitário inicial, que não existe, sejamos claros e rigorosos. O
Norte é um ponto cardial e nada mais do ponto de vista territorial. Há vários
Nortes e protagonistas para todos. Com tanto Norte, temos des(N)orte.
Estas duas
realidades tendem a potenciar-se mutuamente. A atomização da identidade
regional gera desconfiança no poder central. No fundo, cá por cima, vistos lá
de baixo, somos todos uns índios, com hábitos esquisitos e cuja movimentação
precisa de tradução junto do poder. Cada governo tem os seus tradutores de
serviço e de confiança, que ganham por isso poder. Dispenso-me de os referir.
Por sua vez, o alheamento e autismo centrais conduzem à concentração das
energias regionais na barganha dos fundos. Levam ainda à perda de tomada de
posição sobre as questões nacionais vistas na perspetiva da Região, ou seja
acantonamento, coisa que rejeito em absoluto. Poderíamos pensar que esta
inércia tenderia a reforçar o modelo “centralismo forte – municípios com
capacidade de barganha superior à despesa pública que mobiliza e regiões de
planeamento débeis”, sobre o qual tenho abundantemente escrito. O problema é
que o estádio de desenvolvimento do país exige racionais de geração de
investimento público e de políticas públicas que já não podem ser municipais,
sob pena de grave destruição de recursos. Por isso estamos num impasse.
O governo PS
de António Costa emergiu com um propósito de avançar definitivamente com o
aprofundamento da descentralização. Pela minha parte, acho que a experiência
autárquica de António Costa (não é indiferente ter sido em Lisboa e não noutro
município ou cidade do país) contribuiu para a sua aparente convicção. Mas a
conceção de organização territorial do Estado subjacente a esse pretenso
entusiasmo descentralizador não é para mim totalmente legível. Compreendo que o
momento político e estrutural do país não é propício a criar mais uma frente
política de alguma querela político-institucional como aquela que a regionalização
necessariamente abriria. Mas daí a aceitar por exemplo a ideia
constitucionalmente controversa das eleições diretas para as presidências das
áreas metropolitanas e, pior do que essa, a atribuição de legitimidade política
às CCDR com as eleições dos Presidentes através de um colégio eleitoral de
autarcas vai um grande passo.
A divulgação
do recente acordo político com o PSD não aqueceu nem arrefeceu a minha
interrogação sobre o assunto. Dessa divulgação nada de muito relevante
transpareceu. Foi, por isso, com curiosidade, que li o artigo de Luís Ramos
(link aqui) sobre estes temas, provocatoriamente designado de “descentralização
sem regionalização?”. Luís Ramos, deputado e Professor na UTAD e representante
influente no Conselho da Europa, é no PSD ativo de hoje talvez a personalidade
com mais pensamento sobre a matéria, já que o Professor Valente de Oliveira tem
mantido desde a segunda candidatura de Rui Moreira um grande distanciamento
face ao partido. Curiosamente, LR cita-me a propósito de um estudo da
Associação Comercial do Porto, já que a frase “não existe qualquer documento
que sustente uma estratégia mais ampla de descentralização, nem é sequer claro
que exista tal estratégia” foi escrita pelo JE. Com estas citações, corro o
risco de que o atual Governo não morra de amores pela minha prosa.
Mas não é
para esse efeito que o texto de LR me interessa. O texto seria relevante para
clarificar se o acordo PS-PSD reflete de facto alguma negociação. Ora,
pressupondo que LR está perto ou pelo menos sintonizado com a direção política
atual do PSD (ou não estará?), a interrogação que o texto coloca ao referir que
a “descentralização socialista parece confundir-se com um mero processo de
‘municipalização’ sugere que o impasse continua, mesmo após e apesar do acordo.
Sou dos que
penso que um processo consequente em termos de coerência de atribuições e de
transferência de recursos para os municípios pode constituir uma vantagem e
gerar algum valor acrescentado num Estado tão centralizado. Há inúmeros
domínios de política pública de proximidade aos cidadãos, por exemplo na área
social e cultural, que podem perfeitamente ser “entregues” por via municipal,
contribuindo por essa via para um novo estádio de capacitação de municípios.
Mas essa conclusão não pode deixar de ser ponderada pela forte heterogeneidade
dos municípios em Portugal, em termos de capacidade de “delivery” de políticas públicas. E, em estreita consonância com
esta heterogeneidade, não podemos esquecer que o estádio de mudança estrutural
do país exige uma nova lógica de formação de investimento público que não seja apenas
central e municipal. Existe, temos de o reconhecer, o que tem sido difícil, um gap de organização territorial
intermédia do Estado, que faça emergir novas lógicas e racionais de alocação de
recursos. Sem regionalização, é difícil às CCDR cumprirem o duplo estatuto de
agentes de concertação intermunicipal no quadro de uma NUTS II e de garante da
coerência do Estado nas regiões. O primeiro por falta de legitimidade de
representação e o segundo por manifesta falta de poder para vincular
ministérios e serviços desconcentrados a uma lógica consistente de
territorialização de políticas públicas. Estamos por isso perante um impasse.
Os impasses
institucionais ultrapassam-se seja por via disruptiva ou por via incremental de
inovação institucional. Posso dar por adquirido que não há energia e recursos
políticos para uma via disruptiva. Posso estar enganado e estou aberto a que me
apresentem argumentação alternativa. Provisoriamente, a pergunta que deve
colocar-se é a de saber se a via incremental é possível. Face aos dois
estatutos que as CCDR não conseguem responder simultaneamente, podemos
perguntar qual deles tem margem de progresso, avaliada a partir das dinâmicas
recentes?
No que respeita
ao segundo estatuto, o de garante da coerência do Estado nas regiões não
vislumbro nada de recente que me demonstre que há dinâmicas institucionais
emergentes que me provem o contrário. O meu colega de blogue tem provavelmente
uma visão diferente construída a partir de uma experiência de “mãos na
matéria”, mais fundamentada que a minha mais distante da praxis. Mas o que eu
vejo é o contrário, é por exemplo a canibalização nem sempre coerente dos
programas regionais pelos ministérios setoriais, o que é a antítese de uma
coerência?
E quanto ao
primeiro estatuto? Aí, não propriamente nas CCDR, mas antes ao nível do
relacionamento dos municípios com as instituições intermédias das CIM, vejo
mudanças. Embora em termos difusos e diferenciados por regiões do país, em
vinte anos mudou a perceção dos municípios quanto ao significado da cooperação
intermunicipal. Não estou a ignorar que a praxis de algumas CIM corresponda em
muitos casos a casamentos de conveniência, para no plano formal do
intermunicipal melhor defender o investimento municipal. Mas estou em crer que,
do ponto de vista da aprendizagem organizacional e salvaguardando as mudanças
de ciclo de lideranças municipais, existe hoje uma perceção mais aberta da
gestão de responsabilidades (e de serviços) partilhadas entre municípios e
espaços de representação intermunicipal. Pode ser algo de embrionário e não
sustentado, que exija uma política de seletividade e continuidade e sobretudo
coerência de instrumentos de política pública a territorializar com as CIM. Mas
aqui há alguma mudança. No outro estatuto, o da coerência do Estado nas
regiões, não existe essa mudança. Logo, um potencial de intervenção, haja
vontade política para tal e para proceder aos ajustamentos constitucionais
necessários.
Toda esta
reflexão pressupõe que se abandone definitivamente o limbo de saber se a
regionalização é ou não para cumprir. Em meu entender, qualquer decisão, ou
seja manter ou não o compromisso constitucional é clarificadora. O limbo em que
estamos é que não o é. Sem essa clarificação, não haverá opção entre a via
disruptiva e as vias incrementais possíveis. Quem é que perde? Seguramente, a
racionalidade e a territorialização do investimento público e das políticas
públicas em geral.
A bem do
debate.
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