(Reflexões algo anárquicas enquanto me deliciava com uma
capa da New Yorker e meditava sobre
as “notícias” do fim de semana. Nada que me surpreenda, afinal.)
As capas da New Yorker são obras de arte que merecem
ser contempladas com o tempo que nos costumamos atribuir numa visita relaxada a
um museu ou a uma qualquer exposição. Essa contemplação faz parte dos meus
rituais já há muito tempo, quando me integrava no grupo de leitores restrito da
revista, conforme testemunho dos reduzidos pontos de venda da revista em
Portugal e antes de me ter decidido pela assinatura em papel e em digital
(sensações diferentes). A leitura da New
Yorker é também uma espécie de faz de conta de que somos cidadãos
cosmopolitas do mundo, que não sou assumida e claramente. Por isso faz bem ao
ego e aos sentidos.
Pois estava
eu a contemplar esta capa e a pensar com os meus botões que poderíamos estar a
viver um período de “bons sons musicais” induzidos pela situação económica
global, a ausência de crispação relevante, quase três anos passados de uma
experiência de acordo político à esquerda que julgávamos impossível de
concretizar, indevidamente, agora o sabemos. Mas as notícias da semana que hoje
acaba e os seus reflexos nos semanários são ilustrações de um outro ambiente
sonoro, bem menos idílico do que o representado na atmosfera urbana desta
preciosa capa da NY.
Bastam
alguns dedos de testa para se começar a recompor o puzzle disperso que as investigações económicas e criminais em
curso nos proporcionam. E, no quadro de algo tão pantanoso (esperamos de
António Guterres memórias sobre a sua interpretação do pântano), devemos
expurgar primeiro a insolitamente sórdida divulgação de vídeos de
interrogatórios a Sócrates, Salgado e outros. A desfaçatez e impunidade com que
o Ministério Público e o Ministério da Justiça são sistematicamente
desautorizados revelam algo de muito profundo, manifestamente sórdido e
ilustração do que de muito tenebroso andará pelos corredores da justiça.
Mas
afastemos por momentos o sórdido da divulgação para nos concentrarmos no que as
teias de interesses e benefícios indevidos, agora identificadas, nos trazem em
matéria de compreensão do modelo económico exaurido pelos acontecimentos de
2007-08 e de 2011. Estou em linha com Ricardo Costa quando ele nos alerta para
o salto incomensurável que o caso EDP representa na investigação, com Salgado,
Manuel Pinho e também Mexia à perna nas investigações. A revelação dos
recebimentos de Manuel Pinho em pleno exercício das funções de ministro
representa uma escalada decisiva em matéria do desvendar das manifestações mais
sórdidas do modelo económico que se tinha enraizado em torno dos não
transacionáveis, da centralização na capital e da captura das boas graças do
Estado e dos sucessivos governos. Era algo que se intuía e do ponto de vista de
um estudioso da economia há uma regularidade incontornável que nunca perdi de
vista: as economias de renda em que tais rendas representam uma forma superior
de captura dos interesses do Estado estão sempre associadas à família de
acontecimentos e práticas agora desvendadas com os dados dos casos Sócrates e
EDP. É algo de intrínseco ao modelo. Mais tarde ou mais cedo lá aparecem os
comportamentos desviantes, sobretudo porque não há democraticidade possível na
distribuição das rendas. Ou seja, não funciona aqui a máxima do “ou há
moralidade ou comem todos”. Sim, não comem todos mas apenas alguns, até porque
a proximidade aos interesses do Estado que se pretende capturar não é um
negócio de livre entrada. O próprio modo de captura funciona como barreira a
essa mesma entrada.
Volto a este
respeito a citar a importância de uma obra recente, THE CAPTURED ECONOMY de
Brink Lindsey e de Steven Teles da Oxford University Press (2017).
Menos clara
ainda é a ligação entre os casos EDP e Sócrates e não é seguro que se consiga
estabelecer um nexo causal, mesmo admitindo que Salgado poderá ser o grande
distribuidor de jogo, o cérebro pensante.
Mas do meu
ponto de vista o que me interessa destacar é a presença do modelo económico a
que me referi. Dúvidas há se tal modelo foi definitivamente exaurido e se a
emergência dos transacionáveis e o impulso da concorrência a ele associado
serão suficientes para o erradicar de vez. Tenho sinceras dúvidas, sobretudo a
partir do momento e do modo em que as privatizações tomaram o seu rumo.
Noutro
plano, tudo que nos vai passando pelos olhos e nos causando incómodo ou
perplexidade diz respeito à corte do centralismo. Ao pé e em confronto com
estas agendas de corrupção, o que se vai passando pela “província” (na
expressão de alguns destes magarefes) é bálsamo contra veneno. As pequenas
cumplicidades dos meios autárquicos e locais existem, não vale a pena
ignorá-las. Mas quando confrontadas com a captura de interesses desta
envergadura são brincadeiras de adolescentes. Aliás, basta estar no terreno
para perceber que o “local” é hoje bem mais accountable
do que o central. Por aqui se percebe a enorme resistência à descentralização e
sobretudo ao aumento do indicador básico da não descentralização em Portugal: o
baixo peso da despesa pública realizada pelos níveis inferiores de organização
territorial abaixo do central em relação ao total da despesa pública.
Ou seja, o
modelo económico de que falávamos, a corte e o centralismo são indissociáveis,
sempre o foram, apenas vão mudando os personagens ao longo do tempo.
E,
finalmente, quisera eu ter a finura de escrita de Clara Ferreira Alves (A Pluma
Caprichosa de hoje) para descrever o que costumo designar pelo “síndrome” das “contas
ao fim do mês”. Portugal é, sempre o foi, o país dos pequenos desvios, dos
jeitinhos, das pequenas manobras, dos “locupletamentosinhos”, afinal o produto de
uma menoridade económica que não dá para todos, embora por vezes e em certas épocas
pareça que isso será possível. CFA dedica-lhe um contundente texto na crónica de
hoje, ela que porventura nunca terá enfrentado o desafio das continhas do fim
do mês. Pois nos últimos dias, alguns deputados do nosso Parlamento viram-se
projetados para a opinião pública por um jogo de aplicação de subsídios de
insularidade que não lembra ao careca e que deve colocar o nosso Presidente em
transe absoluto. Por um lado, se queremos que o parlamento seja a representação
do povo, então o seu comportamento está em linha com um universo que é
tipicamente nacional. Todos praguejam contra o Estado e ei-los que na próxima
curva estão a agilizar um procedimento qualquer para otimizar o acesso às suas
benesses. Mas, por outro lado, em tempos de populismos facilmente alimentáveis,
seria de bom tempo clarificar atempadamente as condições de atribuição desse
tipo de subsídios. Admito que possam existir e até que tenham de existir. Mas por
favor não me venham com pretensas lições ao Zé Povinho que dominam os
interesses superiores da ética. E à esquerda, com personalidades como Carlos César
e Ferro Rodrigues na liça, evitem de uma vez por todas arvorar-se de uma pretensa
superioridade moral e de falsas coberturas históricas ao seu papel na
democracia. Os tempos são outros e quem não estiver disponível para as suas
exigências dedique-se a outras tarefas, por exemplo memórias que permitam
compreender melhor o seu papel na história democrática portuguesa. Já se viu
que tal superioridade não existe e para a próxima vez cuidado com os independentes
que convidam para a governação. Manuel Pinho é de facto uma peça requintada do
nosso independentismo político, com coleções de Man Ray e tudo.
E eis como o
modelo económico que se exauriu, a corte e o síndrome das contas ao fim do mês
estão tão ligados.
Para memória
futura.
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