(Reflexões o menos possível caóticas em torno da intervenção
de Emmanuel Macron no Parlamento Europeu, em Estrasburgo. Oportunidade
para encaixar a para mim triste apreciação de que a esquerda não tem qualquer personalidade
nem projeto sobre a Europa que possa servir de alternativa.)
Apetece-me começar
em jeito de Vítor Espadinha, sim eu sei …
De facto, é visível que Macron constitui
uma personalidade cujo protagonismo incomoda uma certa esquerda que vê no facto
do personagem ter andado pelos corredores do banco de investimento Rothschild e
ter ganho dinheiro com isso uma prova de desconfiança e de cumplicidade com o
mundo dos negócios europeu. Já para não falar nas questões de política interna
em que Macron se atira controversamente a tornar menos rígida uma sociedade
como a francesa que se rigidificou. Por outro lado, os que associam ao atual
projeto europeu a deriva de menorização do papel dos parlamentos nacionais encaram
também com desconfiança o projeto de aprofundamento das instituições europeias
que Macron tem protagonizado. Lá no fundo, e assumindo talvez sem perceção
disso a defesa dos interesses da inércia, seguem a velha máxima “deixem-no
poisar”, esperando que o meteórico Presidente dê com os burros na água no seu
embate com a França dos direitos adquiridos.
Cá para mim,
que não sou propriamente useiro em glorificações religiosas e míticas dos líderes
políticos, quanto mais competentes e empenhados na vida política melhor, nunca
embarquei nessas rejeições espontâneo-esquerdistas do personagem. E tenho razões
para isso, que já explicitei em tempo oportuno neste blogue.
Em primeiro
lugar, não conheço na política contemporânea outra personagem política que tenha
enfrentado corajosamente os cornos do populismo mais insidioso, não cedendo um
milímetro que fosse na defesa dos seus princípios e não se acagaçando com a
chantagem eleitoral de Madame Le Pen. Todos os de boa-fé se recordam do célebre
debate eleitoral entre Macron e Le Pen, no qual foi visível o espanto e
embaraço de Marine quando viu que tinha pela frente um candidato que não se
amedrontava com o crescimento da base eleitoral populista, combatendo-a
defendendo o projeto europeu. Sim, Macron demonstrou que é possível colocar o populismo
nacionalista “en su sítio”, evidenciando
tomates políticos, perdoem a expressão politicamente incorreta. Todos os
restantes se acobardavam e cediam ao nacionalismo acrescentando um ponto se possível
ao desfazer das instituições europeias. Gosto de gente assim, que enfrenta os
problemas sem os ocultar.
Depois,
quando olho à esquerda, o deserto de alternativas com este mesmo registo é desolador
e convida-nos a hibernar por uns tempos, até que seja parido alguém com pensamento
minimamente entusiasmante. Olho para o SPD alemão e encolho os ombros. Olho para
o descalabro do PS francês e só consigo imaginar que Mitterrand gostaria de um
personagem de combate. Olho para os democratas de esquerda em Itália e vejo a
sua redução à mínima expressão, deixando de ser esperança para ninguém no país
a não ser para algumas elites urbanas, mesmo que através de personagens
impolutos. Olho para o PSOE em Espanha e até dá nervoso miudinho quando se
percebe que perante a inépcia do PP ainda está em arrumação interna de casa
para decidir quem manda. E que me perdoe a esquerda em Portugal onde é que está
renovado um pensamento como o de Medeiros Ferreira? Estar de acordo com a crítica
ao modelo austeritário que vingou na União Europeia não significa reconhecer
que entre tais críticos haja alternativas de pensamento para liderar a Europa. E
a posição de Pacheco Pereira de reposição do poder aos parlamentos nacionais
compreende-se mas alguém acredita que daí sairá uma alternativa ao aprofundamento
do projeto europeu?
Tenho de
reconhecer a coragem de Macron em ir ao Parlamento Europeu (discurso com link aqui) combater frontalmente as derivas iliberais que os nacionalismos políticos
e económicos estão a construir: “Contexto em que
uma forma de guerra civil europeia reaparece, em que as nossas diferenças, por
vezes os nossos egoísmos nacionais parecem mais importantes do que aquilo que
nos une face ao resto do mundo. Contexto em que o fascínio iliberal, e voltarei
a isso, cresce todos os dias”.
No discurso de
Macron em Estrasburgo gosto especialmente destes dois parágrafos:
“Alguns imputam todos os nossos males a uma Europa odiosa, fugindo assim das
suas próprias responsabilidades, dizem-nos como justificação que os povos já não
querem a Europa. Propõem vias douradas e por vezes há quem nelas acredite. Em
seguida fogem às suas responsabilidades quando era necessário conduzir os seus
povos até ao fim desta aventura. Outros afirmam sabiamente que não devemos acelerar
o passo para não fazer mexer bruscamente o povo, que isso faria o jogo dos
populistas. Estes gostariam de se amoldar a uma música bem conhecida : a
da paralisia, não tomando consciência do nosso tempo.
Creio que nada é mais falso do que isto. Seria cómodo, com efeito, dissolver
o povo ou excitar as suas paixões para evitar a proposta de um caminho. Criticar
sem propor, destruir sem reconstruir. Não foi o povo que abandonou a ideia
europeia, é a traição dos funcionários que a ameaça. É preciso compreender a
ira dos povos da Europa de hoje. Não é de pedagogia que eles precisam mas de um
projeto novo, de uma exigência de eficácia no dia-a-dia. E os que negoceiam com
esta ira que atiçam propõem como único futuro a via sem retorno da rotura nacionalista
de hoje. Já experimentámos todas essas vias e todas as consequências.
No discurso
de Estrasburgo há ainda referências mais diretas e sistemáticas ao reforço da
soberania europeia com diferentes dimensões: a soberania necessária para
combater os desafios maiores do mundo de hoje; a soberania do digital e do numérico,
comandando a fronteira da regulação dos grandes processadores de informação; o
aprofundamento da União Económica e Monetária; a soberania económica e a climática
e energética; a soberania da saúde e da alimentação.
E sobretudo este
compromisso:
“E não cederei a nenhum fascínio pelas soberanias autoritárias,
não cederei a nenhuma facilidade dos tempos presentes, mas penso que em
conjunto a nossa responsabilidade nos próximos meses é a de organizar o
verdadeiro debate europeu, de ter os verdadeiros prazos europeus, que permitirão
aos nossos povos escolher entre os que querem uma Europa que não proponha nada,
os que querem uma Europa curvada, os que querem uma Europa da inércia, ou os
estão prontos a conduzir uma Europa da ambição, de uma soberania reinventada,
de uma democracia viva, aquela em que acreditamos.”
Resta saber
se Macron tem hoje na Europa interlocutores para esta ambição. Pelo que se vai
sabendo Merkel hesita entre dar corda, mesmo que crítica, a esta ambição, ou pontapear
internamente quem lhe morde os calcanhares inviabilizando uma retirada em glória (link aqui).
Esse vai ser o drama da questão. Estou curioso para acompanhar o impacto
interno, em França, desta ambição.
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