sexta-feira, 18 de junho de 2021

BOLSONARO E O ECONOMIST

 

(Há dias, quando registava nos meus cadernos de estimação ideias para posts futuros, dei de caras com a reação de Bolsonaro à maneira como a revista britânica avalia o futuro do Brasil. Numa primeira apreciação, percebe-se que a imagem que serve de capa ao Special Report que a revista dedicou ao Brasil, e que abre este post, terá incendiado a ira do descontrolado presidente brasileiro. Mas a leitura do relatório é ainda mais explicativa pois coloca o Brasil numa rota de estagnação, apesar de ser marcada por uma dívida que é essencialmente emitida em moeda brasileira.)

Na vasta família de estudiosos do desenvolvimento há uma linha de demarcação que separa dois grupos que, devido à natureza da linha divisória, têm uma grande dificuldade de diálogo cruzado. A linha divisória pode ser descrita por esta frase: history matters (a história importa). Esta linha ganhou abrangência principalmente quando o determinismo histórico foi ultrapassado e se compreendeu que a história traz consigo um condicionamento que, mesmo não sendo absoluto, representa dependências de percurso, que estreitam o campo de possibilidades de saída e podem penalizar trajetórias de desenvolvimento mais abertas e sem essa carga de condicionamento histórico.

Quando ensinamos estas coisas, o Brasil é regra geral um exemplo de eleição, pois não só a probabilidade dos nossos alunos reconhecerem algo que os motive é mais elevada (e nos tempos que correm essa é uma batalha pedagógica permanente), mas também o modelo de desenvolvimento brasileiro presta-se favoravelmente a procurar em cada estádio do seu desenvolvimento o peso estrutural do passado.

O Brasil é de facto um exemplo de processo de desenvolvimento ideal para se compreender como as estruturas económicas, políticas e sociais vão interagindo entre si em função de marcas históricas que vão travestindo a sua expressão ao longo do tempo, não sendo erradicadas, antes assumindo diferentes formas, igualmente pesadas e penalizadoras.

Há dois exemplos de heranças históricas que marcaram indelevelmente a sociedade e a economia brasileiras: a monoexportação tendencial de produtos primários (café, cacau, açúcar, por exemplo) e as raízes do processo de industrialização brasileiro que foram criadas num ambiente de superproteção do mercado interno (a substituição de importações), que distorceu quanto baste a economia brasileira e que foi interrompida com uma internacionalização truncada do mercado interno que foi de par com o golpe militar de 1964.

As estruturas económicas e o modelo político do Brasil ainda respiram estas heranças e, se quisermos ser rigorosos, as grandes estruturas exportadoras primárias do Brasil (particularmente de carne, criadores de gado) ainda funcionam em alguns Estados segundo modelos inspirados no “quero, posso e mando” dos exportadores primários de outros tempos.

O Economist refere-se ao sistema político como um universo em que “Brasília está cheio de novos políticos e de velhas ideias”(link aqui), o que é uma metáfora para o caráter historicamente acumulado de vícios de formação das estruturas de poder.

O PT de Lula e Dilma terá perdido talvez a grande oportunidade histórica de capitalizar a descida histórica dos níveis de pobreza e a mobilidade social ascendente que estava em curso deixando-se envolver nas teias da viciação das regras do jogo. A partir daí a lógica do salva-se quem tem poder económico, a estagnação profunda do elevador social e a mais profunda desfaçatez dos poderes religiosos, ambiente que precede e explica a subida ao poder de Bolsonaro e a caótica e criminosa gestão da pandemia.

A metáfora da figura do “país da eterna esperança não confirmada” que o Brasil alimentou durante todo este processo parece já não ter o poder explicativo suficiente. A indiferença surda e brutal aos cemitérios – valas comuns improvisados do COVID-19 anuncia-nos que os tempos ainda são mais obscuros e que talvez não tenhamos ainda encontrado a metáfora mais pertinente para os definir.

Sem comentários:

Enviar um comentário